O acesso é biométrico. Só 17 pessoas têm autorização para entrar no Laboratório de Análises de Dopagem (LAD), que no dia 23 de setembro recuperou a credenciação da Agência Mundial Antidopagem (WADA, sigla em inglês) e que "em breve" concentrará todas as análises antidopagem do país. Portugal tem assim uma nova arma na luta contra o doping no desporto. Uma luta com pelo menos 110 anos..O primeiro caso de doping da história ainda hoje é um mistério. Francisco Lázaro morreu durante a Maratona nos Jogos Olímpicos Estocolmo 1912. Noticiou-se a morte por desidratação e insolação... até ser apontada a hipótese de doping. Segundo contou ao DN em 2009 o então professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana, Gustavo Pires, o maratonista "foi vítima de uma cultura que aconselhava a prática comum naquela altura, entre os atletas e os ciclistas: uma mistura a que chamava emborcação - essência de terebintina (anestésico) e o ácido acético (vinagre) - como complemento do treino"..Passado mais de um século, a dúvida persiste. E talvez para lembrar que a dúvida é inaceitável e que o método científico é a solução para a verdade desportiva, há um Francisco Lázaro dentro de uma aguarela de cerca de 1,5 metros à entrada do laboratório, qual avivador de memória ou polícia das boas práticas desportivas..Há seis anos que os técnicos aguardavam pelo dia que ainda há de vir, agora sob alçada do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), que "dará resposta adequada na luta contra a dopagem, a nível nacional e internacional", segundo o presidente do INSA, Fernando de Almeida..No LAD até as amostras têm de pedir licença para entrar, ao cumprirem um rigoroso circuito que atestará a inviolabilidade do processo. É a chamada documentação de suporte de resultado analítico positivo. Um dossiê de informação, desde a colheita até à emissão do resultado: a amostra número tal chegou ao laboratório no dia x, às tantas horas; foi recebida pelo segurança x, que entregou ao técnico x no laboratório, à x horas; o técnico colocou na arca frigorifica às x horas, sob temperatura x. Um ciclo que se repete na retirada da amostra para análise..Os técnicos do LAD não fazem colheitas. Esse é o primeiro passo para assegurar o anonimato do atleta e garantir um tratamento independente. O fluído biológico (sangue ou urina) é colhido pelos responsáveis de controlo de dopagem (também conhecidos por vampiros) da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) e depositado em dois resistentes contentores (vulgo frascos ou tubos), lacrados em frente ao atleta e identificados como amostra A e amostra B..Chegam ao laboratório expurgadas da informação que a liga ao praticante. "As amostras, para nós, são um número, mas não nos podemos esquecer de que, por trás de um número, está um atleta e o nosso trabalho terá repercussões na carreira dele, no laboratório e nas políticas antidopagem", destacou João Ruivo, diretor do LAD, na visita guiada ao DN, onde foi possível atestar desde a resistência dos equipamentos ao rigoroso circuito das amostras..As amostras A e B são armazenadas em frigoríficos diferentes a 20 graus negativos (a temperatura é atestada várias vezes ao dia). A primeira serve para a análise de triagem, com vista à eventual deteção de substância proibidas. Caso haja amostra suspeita é feito um procedimento de confirmação. Se o positivo for confirmado, é comunicado às entidades competentes. Se o atleta não aceitar o resultado e pedir a chamada contra-análise é aberta a amostra B, assiste-lhe o direito de estar presente ou fazer-se representar por um perito e até um tradutor se for o caso. Esta é, aliás, a única altura em que é quebrado o anonimato do envolvido..A confidencialidade, o sigilo e o anonimato não só fazem parte do código de ética como estão contratualizados. O cadeado nas arcas, os armários fechados e com código de acesso atestam isso mesmo. É impossível ter-lhes acesso sem deixar rasto. Todos os equipamentos são calibrados por entidades externas acreditadas e manutenção diária. Até as pipetas estão certificadas. "O processo tem de ser inatacável. Se um falso negativo é mau, um falso positivo é pior, porque arruína a carreira do atleta", lembrou João Ruivo, admitindo que, mesmo que ninguém goste de ser o polícia mau, "um positivo é obviamente mais desafiante do ponto de vista científico"..Criado em 1980, o LAD foi acreditado pela primeira vez em 1987. Em abril de 2016 foi suspenso e em outubro de 2018 retirado da lista dos 30 laboratórios mundiais da WADA. Em maio deste ano, um decreto-lei suportou legalmente a transição do laboratório do Instituto Português do Desporto e Juventude para o INSA, e permitiu a tal independência política exigida e, assim, recuperar a credenciação. O que aconteceu em setembro. A notícia foi recebida "com muita alegria"no LAD, segundo João Ruivo..Durante anos, o trabalho foi reduzido e essencialmente interno e de otimização e desenvolvimento de métodos e de validação de substâncias. Mas também aproveitado para formação de técnicos em laboratórios estrangeiros, modernização do sistema de gestão e aquisição de equipamentos especializados: "Para o exterior podia ser uma laboratório fantasma, mas para nós não. A perspetiva de recuperação levou a um investimento nos recursos humanos e na sua formação. Foram muito resilientes...".Como foi possível fazer, em quatro meses, o que não se conseguiu em seis anos, é algo que fica para as entidades políticas explicarem....Para já o LAD vai manter-se no Estádio Universitário de Lisboa, mas está a ser ponderada a mudança para as instalações do INSA, também na capital. O que envolverá um investimento considerável. Para colocar um laboratório antidoping a funcionar são precisos cerca de 10 milhões de euros. O equipamento tecnológico é de ponta e há um - o espectrómetro de massa - que custa meio milhão de euros e é uma estrela na deteção de esteroides anabolizantes..O analisador hematológico é a outra estrela. Com cerca de um metro, a importância dele é do tamanho do mundo. Não tem um nome pomposo - é conhecido pelo nome do fabricante ou a "máquina do passaporte biológico" -, mas é uma das metodologias mais eficazes para apanhar os "batoteiros" a médio e longo prazo, segundo Sara da Costa. A técnica da área bioquímica e especialista em EPO [Eritropoietina] mostrou ao DN como funciona o analisador e explicou que são precisas várias recolhas/ análises em contextos variados para construir um perfil hematológico. Como um atleta tanto pode ser controlado em Portugal como na China, o aparelho é igual em todo o mundo para impedir adulterações através do método..Até agora as amostras iam para os laboratórios de Barcelona, Espanha (sangue) e Gent, Bélgica (urina), numa complexa e custosa logística (mais de um milhão de euros/ano). O diretor do LAD não revela o valor do acordo com a ADoP, mas garante praticar "valores competitivos" - menos 20% por análise, segundo o secretário de Estado, João Paulo Correia -, além do fator logístico favorável..Até que ponto a não-existência do LAD permitiu a implementação de um caso de doping reiterado sem precedentes, como o verificado no ciclismo, na equipa W52-FC Porto? "Se isso aconteceu, erraram ao pensar assim. Os controlos continuaram e com o mesmo rigor. E quem pensou em fazer batota foi apanhado", respondeu João Ruivo, sem abordar o caso que abalou o ciclismo nacional - a modalidade mais controlada e com mais casos de doping em Portugal -, uma vez que não passou pelo LAD..Só há 30 laboratórios antidopagem WADA a nível mundial. São um instrumento importante na cadeia desportiva pela procura de substâncias ilícitas e métodos proibidos, que aumentam a força muscular ou os níveis de oxigénios e, assim, dão vantagem ao atleta no desempenho físico (além dos riscos para a saúde)..As técnicas físico-químicas para detetar doping fazem parte do secretismo que envolve a missão para não dar armas ao inimigo. A base é testar todas as substâncias proibidas em estado puro. Seja Eritropoetina (EPO), furosemida (diurético), cafeína, cocaína ou efedrina. Há cerca de 350 na lista da WADA, tantas quantas guarda o dispendioso armário do doping, na sala do LAD onde são determinados os padrões de referência..Na ausência de sangue e urina dos atletas portugueses, o laboratório foi testando os atletas universitários, usando da proximidade com o complexo do Estádio Universitário, mas também eles serviram de cobaias. Para fazer controlos negativos e ter a certeza de que o resultado era mesmo negativo, os técnicos aceitaram a recolha de material próprio e assinaram uma declaração a dizer que a substância X não podia ser detetada porque tinham a certeza de que não a tinham ingerido e, assim, atestaram que um negativo era mesmo um negativo..isaura.almeida@dn.pt