Crise do FC Porto: Treinador escoltado e presidente no treino
MANUEL FERNANDO ARAÚJO/LUSA

Crise do FC Porto: Treinador escoltado e presidente no treino

Dragões foram eliminados da Taça de Portugal. É preciso recuar 16 anos para encontrar três derrotas seguidas, embora o cenário global seja semelhante aos das últimas duas temporadas. Crise desportiva reflete problemas financeiros e crise de identidade pós-Pinto da Costa.
Publicado a
Atualizado a

O momento é de crise. A eliminação do FC Porto da Taça de Portugal, prova que venceu nos últimos três anos, fez a contestação a Vítor Bruno subir de tom. O treinador garantiu ter condições para continuar ao leme da equipa, mas uma derrota na quinta-feira, com o Anderlecht, da quinta jornada da fase de liga da Liga Europa, tornará difícil a continuidade, uma vez que os dragões estão em 22.º lugar na prova europeia e ficam com o apuramento em risco.

Depois da derrota com o Moreirense (2-1), no domingo, o técnico recebeu um voto de confiança do presidente André Villas-Boas, que desmarcou a presença na Conferência Record Summit, em Lisboa, para estar no arranque da preparação para o jogo europeu. Tal como os dois homens fortes do futebol, Andoni Zubizarreta (diretor desportivo) e Jorge Costa (diretor do futebol).

A derrota com o Moreirense (2-1) foi a terceira consecutiva e em três competições diferentes, depois da Lazio (2-1, Liga Europa) e do Benfica (4-1, I Liga). Há 16 anos que o FC Porto não perdia três jogos seguidos - em 2008-09, também por esta altura do ano, os dragões perderam com o Dínamo Kiev para a Champions (1-0), com o Leixões (2-3) e a Naval (1-0) para a I Liga - e com a agravante de ficarem fora de uma prova que venceram em 2022, 2023 e 2024.

No total, esta época, os dragões somam cinco desaires e um empate em 19 jogos. Comparativamente, o cenário é idêntico ao vivido na última época. Nos primeiros 19 encontros de 2023-24, os dragões contavam com 13 vitórias, cinco derrotas (duas com o Benfica, duas com o Barcelona e uma contra o Estoril) e um empate (Boavista). Já em 2022-23, a equipa azul e branca somava 13 vitórias, quatro derrotas (Rio Ave, At. Madrid, Club Brugge, Benfica) e dois empates (Santa Clara e Estoril).

Contestação ao petardo e segurança privada para Vítor Bruno

Os adeptos querem vitórias. Na era de Pinto da Costa, que em março, ao fim de 42 anos, perdeu as eleições para André Villas-Boas, o clube venceu 23 campeonatos, uma Taça da Liga, 15 Taças de Portugal, 22 Supertaças, uma Taça UEFA, uma Liga Europa, uma Supertaça Europeia e duas Ligas dos Campeões. Os maus resultados foram o rastilho para a explosão do descontentamento para aqueles que antes eram "a guarda pretoriana" da anterior direção, nas palavras de André Villas-Boas, que venceu as eleições de abril.

A recente expulsão de sócio de Fernando Madureira, o único dos 9 arguidos da Operação Petoriano ainda em prisão preventiva e acusado de estar envolvido nos desacatos da Assembleia Geral, 13 de novembro de 2023, que foi interrompida devido a agressões a associados e a revisão do protocolo do clube com os SuperDragões, deixaram o grupo organizado de adeptos em abolição. As manifestações de desagrado pelos maus resultados saltaram rapidamente da bancada para a porta do Dragão e do Olival ou, no caso, porta de casa do treinador.

Após a pesada derrota (4-1) no Estádio da Luz, com o Benfica, o treinador portista foi alvo de pedidos de demissão e ameaçado, e o presidente revelou, no passado sábado, que o clube providenciou segurança privada ao técnico, após a maior derrota em 60 anos diante do grande rival. A pausa no calendário para os jogos das seleções acalmou a contestação, que a derrota com o Moreirense agravou. As lágrimas de Samu (foi suplente e só entrou no fim do jogo), Pepê e Zé Pedro não chegaram para acalmar as manifestações de desagrado, após a eliminação precoce da Taça de Portugal, competição onde o FC Porto não perdia um jogo há quase quatro anos.

E assim o clima de guerrilha voltou, com alguns adeptos a atirararem petardos na direção do autocarro da equipa e a fazerem uma espera aos jogadores. Escoltados, Villas-Boas, que pretende rever o protocolo com os Super Dragões e reformular os termos de cooperação com a claque, e o seu chefe do futebol, Jorge Costa, falaram à pequena multidão em fúria, que lhe pedia a cabeça de Vítor Bruno, que hoje chegou ao centro de treinos do Olival com segurança.


Mudança de treinador nada pacífica e perda de referências no balneário

A troca de Sérgio Conceição pelo seu então adjunto, Vítor Bruno, foi polémica e tornou-se feia mediaticamente com acusações de traição feitas pelo treinador mais titulado da história do FC Porto. Villas-Boas assumiu a escolha e deixar cair Vítor Bruno é um assumir de culpas que vai evitar ao máximo, segundo soube o DN. Ele é o primeiro rosto de mudança, mas a mudança em termos desportivos não está a correr bem. Ele sabe disso, até porque  foi treinador, mas como líder também sabe que a parte desportiva é apenas isso, uma parte de um problema que vai desde as finanças à crise de identidade de um clube umbilicalmente ligado aos ex-líderes, Pinto da Costa e Sérgio Conceição.

A saída de Pepe (acabou a carreira), Evanilson (vendido por 47 milhões porque o clube precisava de encaixe financeiro imediato), Francisco Conceição (emprestado à Juventus devido à situação da saída do pai, Sérgio Conceição) e Taremi (em fim de contrato) foram um rude golpe na identidade do balneário, que Vítor Bruno foi obrigado a refrescar com jovens e inexperientes talentos da casa, como Francisco Moura. Samu e Fábio Vieira foram o único upgrade, mas só disfarçaram a degradação gradual do valor desportivo do plantel. Afinal antes de Taremi, também Uribe, Mbemba, Nakajima, Marega, Aboubakar, Herrera ou Marcano saíram a custo zero.

Mas nem tudo são problemas herdados. O FC Porto de hoje não é o mesmo do início da época, em que conseguiu uma empolgante reviravolta no marcador e venceu o Sporting na Supertaça (4-3). Vítor Bruno tem divergido muito e tem-se perdido em alterações estratégicas ao onze que têm impedido a equipa de crescer usando uma base sólida assente no trio - Pepê, Nico González e Fábio Vieira. E o assumir de responsabilidade pelos maus resultados não lhe valeram a paciência dos adeptos, que em Moreira de Cónegos lhe lembraram disso com uma tarja, onde se podia ler: “Esta é a nossa condição: raça, luta, união. Honrar o Porto é a nossa tradição.”

Se a nível ofensivo os números estão dentro da normalidade imposta pelas últimas épocas (46 golos em 19 encontros), os golos sofridos (21 golos em 19 jogos) são incomuns para uma equipa que até tem um dos melhores guarda-redes do Mundo, Diogo Costa, e dois defesas centrais com carimbo de seleção (Tiago Djaló, Portugal ) e  Nehuen Perez (Argentina). A equipa tem-se mostrado particularmente permeável nas bolas aéreas e nas bolas paradas (cantos e livres) e isso custou caro, nos jogos frente a Lazio, Moreirense e Manchester United.

Dos níveis mínimos históricos de tesouraria à entrada de 50 ME

Assim que tomou posse como presidente do clube, no dia 7 de maio (na SAD só a 28 de maio), André Villas-Boas assumiu que a missão principal era arrumar a casa financeiramente, tendo denunciado o "estado financeiro muito preocupante". Preocupação essa refletida no Relatório e Contas Individuais e Consolidadas relativas ao exercício 2023-24, com prejuízo de 21 milhões de euros. Um resultado herdado da anterior administração (11 dos 12 meses em questão) aprovado, no sábado, véspera do jogo da Taça de Portugal, em Assembleia Geral, por quase 1200 sócios do FC Porto em Assembleia Geral.

Em termos globais, a SAD do FC Porto registou, a 30 de Junho, um capital próprio negativo no valor de 113,8 ME,  inferior aos 176ME do mesmo período do ano anterior. O activo total atinge os 407,1ME, traduzindo um aumento de 50,8 milhões face a Junho de 2023, especialmente fruto da reavaliação contabilística do Estádio do Dragão. O passivo, por sua vez, passou de 532,3 milhões para os actuais 520,9 milhões, uma redução de mais de 11,3 milhões.

"Quando esta administração tomou posse, a liquidez que tínhamos estava em níveis mínimos históricos. Não existia nenhum processo de financiamento em curso para aceder a liquidez. A única operação a decorrer era da Ithaka, que só teria impacto em outubro, como veio a ter", explicou o dirigente azul e branco, no dia 2 de novembro, revelando que, depois de tomarem posse, aparecerem credores a reclmar dívidas. "O desbalanceamento de tesouraria era na ordem dos 86 milhões de euros entre passivo e ativo corrente: 7 milhões a receber e 93 milhões a pagar com transferências de jogadores", segundo Pereira da Costa, que, assim que entrou, entre maio e junho, teve de fazer face a compromissos financeiros de 28 milhões de euros.

Por tudo isto está em curso uma auditoria forense à gestão dos últimos anos.

O plano para reduzir custos com a dívida do clube e da SAD a médio prazo está em marcha. "Daqui a três anos temos condições para ter custos de financiamento significativamente mais baixos", disse o administrador financeiro da SAD portista, José Pedro Pereira da Costa, depois de lançar uma nova emissão de obrigações no valor de 30 milhões de euros. Segundo o relatório e contas do exercício de 2023-24, a FC Porto SAD tinha em 30 de junho de 2024 dois empréstimos obrigacionistas em curso: um lançado em abril de 2022 e chegou aos 50 milhões, que vence em abril de 2025, enquanto o outro começou em junho de 2023 e ocasionou 55 milhões, que vencem em 2026.

Os indíces negativos só são contrariados pelo acordo com a Ithaka, para exploração comercial do Estádio do Dragão por 25 anos, que permitiu um encaixe de 50 ME no passado dia 31 de outubro. Um contrato feito nos últimos dias da gestão de Pinto da Costa, que a atual direção renegociou de 65 para 100 ME (sendo 35ME mediante certos objetivos).

Demitir Vítor Bruno seria por isso muito mais do que despedir um treinador, seria olhar para trás que Villas-Boas recusa... para já.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt