Centenário da primeira medalha olímpica. A herança que os pioneiros deixaram a Portugal
DR Família de Hélder de Sousa Martins

Centenário da primeira medalha olímpica. A herança que os pioneiros deixaram a Portugal

Os cavaleiros Hélder de Sousa Martins, Luís Cardoso de Menezes, José Mouzinho d’Albuquerque e Aníbal Borges d’Almeida conquistaram o Bronze no equestre. O DN foi à procura das quatro medalhas entregues por Pierre de Coubertin: duas estão em Lisboa, uma no Brasil e há outra desaparecida.
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Faz hoje 100 anos que os cavaleiros Hélder de Sousa Martins, Aníbal Borges d’Almeida, José Mouzinho d'Albuquerque e Luís Cardoso de Menezes surpreenderam o mundo equestre ao terminarem o Prémio das Nações dos Jogos Olímpicos em 3.º lugar, com direito ao Bronze. Foi em Paris, no dia 27 de julho de 1924, e a herança tanto desportiva como social marcou o País, que hoje totaliza 28 medalhas olímpicas.

Um século depois, Manuel Carvalho Martins vai dar seguimento à história olímpica do avô Hélder em Paris2024 como juiz de saltos na competição de hipismo. Marcar presença na competição que ontem começou na Cidade Luz “será especial” para o antigo cavaleiro e vice-presidente da Sociedade Hípica Portuguesa, agora juiz internacional de saltos.

Tem sido ele e a mãe, nora do medalhado, a dar voz ao orgulho de uma família onde a tradição hípica se mantém e o batismo equestre acontece aos 6 meses de idade. Foi assim com Manuel, que aos 18 meses ganhou o seu primeiro troféu: “Meteram-me em cima de um pónei e desfilei à frente dos cavaleiros que iam competir. Depois deram-me uma taça pequenina.”

Para eles é uma “honra enorme” dar seguimento ao legado de Hélder Martins, cavaleiro nascido em Lisboa a 28 de novembro de 1901. Desde filhos, netos, sobrinhos, primos em segunda e já terceira geração... quase todos na família competiram ou competem. Abrindo o livro das recordações, Manuel Carvalho Martins contou ao DN que “a história mais curiosa dessas Olimpíadas era a da bandeira” ou a falta dela: “Dizia que tiveram de fazer uma bandeira à pressa cozendo um bocado de pano vermelho e verde porque eles recusaram ir receber a medalha sem bandeira.”

Essa memória foi passada de geração em geração, assim como o diploma, as fotografias, as condecorações, como a do rei de Espanha, Afonso XIII, bisavô do atual Rei, e o Grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo. Comendador da Ordem de S. Gregório Magno do Vaticano, comandou a Cavalaria 2 e a Cavalaria 7 e foi ele que motorizou a Polícia do Exército. Militar de carreira, Hélder de Sousa Martins nunca deixou de competir e teria ainda mais duas participações olímpicas, em Amesterdão1928 e Londres1948.

Morreu ainda jovem, em 1953. “O funeral foi a coisa mais impressionante que possa imaginar. Fomos a pé subir a Cláudio Nunes, até ao Cemitério de Benfica, a acompanhar o automóvel funerário. O cavalo ia atrás com um manto preto e ao lado um oficial com as condecorações. Um espetáculo bonito e ao mesmo tempo triste”, contou a nora, Maria Ana Martins, recordando “um homem rígido, rigoroso, exigente”, que “fora de casa mantinha a postura de coronel”, mas no seio familiar “era também bondoso e afetuoso”.

Maria Ana casou-se com Hélder Martins, um dos três filhos do cavaleiro, que herdou a medalha. E também ele um apaixonado por cavalos, formado em Veterinária, que chegou a liderar os matadouros de Lisboa e acabou como diretor de serviços do abastecimento dos produtos alimentares. Idolatrava o pai e era muito cioso da medalha. Quando em 2009 fizeram uma homenagem aos atletas Olímpicos, na Figueira da Foz, pediram-lhe para expor a medalha. Ele autorizou, mas avisou o filho Manuel: ‘Quando vieres embora trazes a medalha contigo.’" E assim foi. Ele trouxe a medalha religiosamente de volta a casa. E mesmo quando a GNR lhe pediu para fazer uma réplica em jeito de homenagem a resposta foi: "Não, não, não!”

Nesta família, a tradição hípica não se resume à competição. É mesmo uma forma de vida. Um outro neto do medalhado, Gonçalo Hélder e a mulher, têm uma herdade em Aveiras, onde dão vida aos cavalos em fim de vida, aqueles que já não competem mas ainda podem galopar livremente. O filho deles, Gonçalo Maria, bisneto do cavaleiro, foi Campeão de Iniciados em 2003, vice-campeão de juvenis em 2007 e participou no Campeonato da Europa de Juvenis2007 e continuará assim a dar seguimento à modalidade.

D. Luís de Margaride e o vinho

No caso de Luís Cardoso d’ Menezes, nascido a 14 de julho de 1902, a herança deixada vai além desse feito desportivo. Não há registo de outros desportistas ao nível profissional na família apesar de ter mantido a ligação aos cavalos. Os feitos do cavaleiro incidiram mais na vida Social e Obra Pública, através da política e na evolução da agricaultura e dos produtores de trigo e vinho.

Tinha casa em Lisboa - é a atual Embaixada de Cabo Verde, no Restelo -, mas vivia na propriedade da família em Almeirim, onde os passeios com o neto, Luís Cardoso de Meneses, eram frequentes. “Íamos num Citroën daqueles boca-de-sapo entre as vinhas. De vez em quando ficávamos atolados. Dizia-me: ‘Ó Luís, fica aqui sossegadinho e não se mexa que eu vou buscar o trator, para nos tirar daqui’. Enquanto esperava às vezes  era desafiado a brincar às escondidas com uma lebre”, contou o fiel depositário do Bronze, exemplarmente cuidado e acomodado num caixa de veludo vermelha igualmente com 100 anos de vida.

Tem sido tratada com muito cuidado e atenção. Mesmo quando a pediram para uma exposição e lhe disseram que tinham um seguro, respondeu: “Não há seguro que pague” o valor sentimental que tem. “Para nós não tem preço. Espero que passe para a minha filha Teresa, se ela quiser. Para já é um objeto da família muito estimado.” 

D. Luís de Margaride, como era conhecido por ser descendente paterno dos Condes de Margaride e materno dos Condes de Sobral, era um “homem justo” e um estudioso. “Muitíssimo trabalhador”, dedicou-se a investigar a vinha e o vinho, tendo escrito vários livros, como O Estudo do Problema Viti-Vinícola e a Vinha no Ribatejo são um exemplo disso mesmo. Além de ter sido presidente da Câmara Municipal de Almerim (1972-74), esteve na constituição de várias associações e cooperativas agrícolas, como a extinta fundação da Comissão Vitivinícola Regional do Ribatejo. Teria por isso gostado de saber que depois da sua morte, em 1978, os filhos constituíram a Casa Agrícola Herdeiros de Dom Luís Margaride e lançaram o vinho Dom Hermano (em 1980).

Os Cardoso de Menezes (ou Meneses) prosperaram e proliferaram até ao País vizinho, fruto do casamento do filho de Luís Cardoso d'Menezes  com a espanhola Pilar que conheceu quando foi estudar gestão para a Suíça, e de onde resultaram três filhas, para além de Luís, o primogénito que hoje guarda a medalha centenária. “A minha irmã Pilar tem no hall de entrada de casa uma sela que passou do avô para o pai e depois para ela. Existe uma carinho muito grande por tudo o que era do avô na família toda, tanto do lado Margaride como do lado Cardoso de Menezes. Há uns anos fizeram um encontro na Quinta de Rana, em Carcavelos, e apareceram quase 500!”, lembrou o neto, Luís Cardoso de Meneses, que seguiu a área do Marketing e Gestão e esteve ligado à criação da marca CUF. Hoje é secretário-geral da ONG Aldeias de Crianças SOS e recorda um avô disciplinado e brincalhão: “Tenho memória de uma cena à mesa, em que ele, já na altura da sobremesa, tirava as argolas dos guardanapos, olhava para nós, os mais pequenos, e metia a argola no olho. Era gargalhada certa.”

A medalha desaparecida

Confirmar factos com 100 anos é uma tarefa hercúlea e mostrou-se quase impossível em mês e meio. No caso de Aníbal Borges d’Almeida, outro dos medalhados, foi dificultada pela ida para o Rio de Janeiro, onde morreu em 1959. Deste civil nascido em Figueiró da Granja (Fornos de Algodres, Guarda) a 25 de abril de 1898 - facto confirmado com ajuda do presidente da Junta de Freguesia, Álvaro Santos, e recurso aos registo de batismo - sabia-se pouco. Como era civil, nem o Comité Olímpico, Museu do Desporto, Torre do Tombo ou arquivos da emigração têm informação sobre o medalhado olímpico, que também participou nos JO Amesterdão1928, mas o DN encontrou familiares do medalhado em Portugal e no Brasil.

Na localidade onde nasceu ainda há uma casa brasonada que era da família, que depois se mudou para o Rio de Janeiro, terra da mulher com quem o cavaleiro se casou. Segundo a agora lisboeta Ana Loff, nora do irmão de Aníbal, o cavaleiro era um de seis irmãos, mas o único desportista, que também praticava ginástica e fazia corrida de automóveis. Segundo a história da família reunida pela neta Aurea Maria, Aníbal frequentava o Jockey Club do Rio de Janeiro onde ensinou a prática equestre à filha Isabel do casamento com Nini, uma lisboeta de Alcântara. Teve um cancro que levou a uma amputação de uma braço e lhe tirou alguma alegria no fim da vida, a avaliar pela troca de correspondência com um irmão, que vivia em Portugal. A medalha é hoje um pedaço da história na posse do neto Ernesto, que vive no Rio de Janeiro e que o DN não conseguiu contactar em tempo útil para esta reportagem.

No caso de José Mousinho d’ Albuquerque o mistério adensa-se com um pedido de exumação do seu cadáver por familiares - que se julgava não ter. O cavaleiro não teve filhos, assim como a irmã, segundo a árvore genealógica da família Mouzinho de Albuquerque, que assim se teria ou terá extinguido. Segundo dados do Hospital Militar, morreu lá internado em1965 e foi sepultado no Cemitério do Alto de São João (Lisboa) de forma temporária. De acordo com registos do cemitério, a família solicitou a exumação e trasladação em 1970 para o Cemitério Inglês, para ser sepultado junto da primeira mulher, que se suspeita ter ligações a Inglaterra. O segundo casamento revela outra história de amor. Depois de ajudar a libertar um casal preso durante a I Guerra Mundial, o cavaleiro acabou por se apaixonar por essa mulher a casar com ela.

Coronel de cavalaria, José Mouzinho d' Albuquerque nasceu no Porto a 27 de dezembro de 1895, e também foi comandante da GNR e do Regimento de Cavalaria 7, tendo sido ainda adido militar na Embaixada de Portugal em Paris - no Arquivo Nacional da Torre do Tombo constam algumas requisições de material bélico que endereçou ao Estado.

Chegou a ser colocado no Governo Civil de Évora, onde, segundo alguns documentos que constam dos arquivos da biblioteca municipal foi indicado para fazer “inspeção, licenciamento, fiscalização e segurança a Associações, Atividades Lúdicas e Espetáculos, Clube Literário e Recreativo de Vila Viçosa”. E foi ainda diretor da Fábrica de Pólvora e Munições de Barcarena. Mas da Medalha de Bronze nem rasto. Até hoje.

isaura.almeida@dn.pt

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