As memórias de um atribulado ensaio de Lopetegui no Dragão
Raul Costa fez parte da equipa técnica do espanhol e descodifica os processos de um treinador que foi muito contestado no Dragão
Entre 6 de maio de 2014 e 8 de janeiro de 2016, Julen Lopetegui teve no FC Porto o seu primeiro balão de ensaio como treinador de um clube grande. Um ano e meio de uma experiência tormentosa que causou profundas angústias entre os adeptos e terminou em conflito aberto com Pinto da Costa, numa rescisão pouco amigável que obrigou os portistas a sustentarem uma boa parte dos seus vencimentos mesmo depois de ter ido para a seleção espanhola, até ao final da época 2016/17.
O técnico basco chegou de surpresa e com "mucha ilusión de ser protagonista" - um chavão que se colou a um discurso redondo ao longo da passagem pelo Dragão -, mas a "ilusión" inicial de um futebol baseado em muita posse e toque de bola rapidamente se foi desgastando pela falta de eficácia ofensiva que fazia desesperar os adeptos.
Sem qualquer título para amostra, cada vez mais contestado e com uma imagem de arrogância que não foi capaz de contrariar, Lopetegui saiu a meio da época seguinte, com a equipa em terceiro lugar e afastada da Liga dos Campeões.
Raul Costa foi um dos elementos portugueses que tiveram oportunidade de viver por dentro a aventura do basco no FC Porto. Incorporado na equipa técnica do espanhol, o preparador físico, agora a trabalhar no Al-Duhail, campeão do Qatar, lembra ao DN a experiência com um treinador que chegou a Portugal "obcecado por demonstrar que tinha capacidade para trabalhar num clube grande", naquela que era sua primeira experiência a sério a esse nível, depois de dois títulos europeus nas camadas jovens da seleção espanhola (sub-19 e sub-21).
Lopetegui chegou ao FC Porto obcecado por demonstrar que tinha capacidade para treinar um clube grande
Especialista no trabalho de recuperação física e prevenção de lesões dos jogadores, Raúl Costa lembra algumas novidades trazidas por Lopetegui ao nível do treino. Entre elas, uma que o afetou diretamente. "Foi o primeiro a optar por integrar no âmbito da sua equipa técnica o trabalho físico de prevenção de lesões", que o FC Porto fazia já de forma estruturada independentemente dos treinadores que passavam pelo clube. Lopetegui quis ter tudo sob o seu controlo e assim Raul Costa acabou a trabalhar diretamente com o espanhol, num período que, diz, "foi dos melhores em termos físicos, quase sem lesões".
Depois, os próprios treinos, "mais longos e mistos", isto é, com um pouco de todas as vertentes físicas trabalhadas no mesmo treino, ao contrário da escola lusa da periodização tática, que o mentor Vítor Frade espalhou pela maioria dos treinadores portugueses (Mourinho, Villas-Boas, Vítor Pereira...) e que segmenta esse trabalho ao longo das diferentes sessões da semana. E folgas, nem vê-las durante a primeira temporada de Lopetegui no Dragão. "Só me lembro de tirar quatro ou cinco dias pelo Natal. De resto, era de segunda a segunda", recorda Raul.
O FC Porto jogava assim porque era assim que treinava
Sobre o tão criticado modelo de jogo de "muita parra e pouca uva" (ou muita posse e poucos resultados), o ex-preparador portista afirma que "o FC Porto jogava assim porque era assim que treinava". "Era exatamente o que ele queria", nota, aludindo a uma "posse de bola em largura" típica da "escola espanhola" e "não tanto do Barcelona" de Cruyff e Guardiola, onde "o jogo interior também é procurado". Lopetegui "tinha consciência das críticas", refere Raul Costa, e tentou até introduzir algumas alterações, mas sem resultado - na seleção espanhola já se notou essa diferença, nota o preparador português, que recorda do basco um treinador com "liderança forte", "obcecado pelo treino" e "com uma extraordinária cultura geral extra-futebol".