Alfredo Pereira e o par composto por Salvador e Benedita.
Alfredo Pereira e o par composto por Salvador e Benedita.DR.

Alfredo Pereira. O treinador de campeões que luta por uma ginástica acrobática Olímpica

Vídeo do antigo atleta a festejar o ouro de Salvador e Benedita tornou-se viral e o DN foi descobrir a história do técnico da GuimaGym, negro e nascido em Cabo Verde.
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Alfredo não controlou as emoções ao ver os seus ginastas conquistarem o Ouro. Saltou do sofá aos pulos de alegria abraçado a Salvador Oliveira (16 anos) e Benedita Lopes (12 anos), quando viu que o par português tinha ganhado a prova europeia em que participava. O vídeo tornou-se viral e isso deixou o treinador feliz, também, por promover a Ginástica Acrobática, uma disciplina que, apesar de ter alcance mundial, ainda luta para ser Olímpica.

“A reação foi espontânea. Fomos o último par misto a competir. Durante essa hora e meia de aquecimento, não tive acesso a nada, não sabia notas, não sabia classificações, não sabia quais eram as nossas possibilidades. Sabia que os pares mistos eram todos muito bons e que havia uma diferença mínima entre todos. O mínimo deslize poderia alterar completamente o ranking. Por isso, quando vi a classificação foi surreal, alegria pura”, confessa o antigo ginasta e treinador da GuimaGym, um clube de Guimarães fundado a 21 de julho de 2016 e que tem fabricado alguns campeões.

Nascido em Cabo Verde, chegou a Portugal com 7 anos. Os pais trabalhavam em Grijó, Vila Nova de Gaia, e Alfredo e os quatro irmãos ficaram com os avós paternos em Santo Antão, onde a vida era boa. E se havia dificuldades, com 7 anos ele não as sentiu. Lembra-se da brincadeira. De estar na casa da avó. De ir para a escola. E de ter partido uma perna e andar às cavalitas dos outros: “Foi preciso mudar o gesso três vezes, foi um processo chato, mas recuperei bastante e não me impediu de sonhar com a dança e a ginástica.”

Quando chegou a Grijó integrou-se bem. Na escola ainda praticou basquetebol e badminton e fez uma tentativa na dança. “Sempre gostei de fazer ginástica, ficava pregado à televisão a ver os Jogos Olímpicos e sonhava fazer os mesmo exercício, copiava movimentos, tentava [risos], depois quando fui para a escola, fui fazer ginástica e apaixonei-me logo. Os movimentos, a exigência, a superação. Na ginástica, somos nós a trabalhar com o nosso corpo, física e mentalmente”, disse ao DN o antigo ginasta, hesitando em reconhecer que chegou ao nível que tinha em mente, embora considere que podia “ter ido um bocadinho mais longe, se tivesse as bases tão consolidadas”.

Um ginasta de topo, por norma começa a brincar/treinar aos três/quatro anos. É mais fácil uma criança ganhar flexibilidade e consolidar movimentos ainda sem a consciência de medo. Alfredo só começou com 15 anos e diz nunca ter sentido medo de fazer mortais e piruetas.

Correr mal faz parte da equação. Todo o atleta sabe disso. Alfredo sabia disso. Lutou muito para chegar ao topo. Foi ginasta de alta competição. Representou Portugal no Campeonato do Mundo de 2014: “Sabia que queria estar nesse nível e queria ter o meu nome na história da ginástica. Então foi isso, um grande orgulho. Um grande feito pessoal também, representar Portugal é um sentimento especial, uma superação enquanto atleta.”

Parou quando as dores já eram apenas isso, sofrimento: “A dor faz parte da vida de um ginasta, é tão simples quanto isso, mas quando se sobrepões à paixão... Em Portugal é difícil viver do Desporto, a não ser no futebol e um ou algum outro desporto que tenha mais apoio, mas viver da ginástica é quase impossível e também por isso parei.” Tinha 21 anos.

O abandono no auge físico, mas com saturação mental

A decisão de abandonar aconteceu depois de um Campeonato do Mundo. Ele e a parceira, Mariana, tinham conseguido apurar Portugal para os Jogos Olímpicos europeus, mas Alfredo estava esgotado mentalmente. “Na minha cabeça ficar mais seis meses a treinar tanto tempo seria muito pesado, já não estava bem, já estava muito cansado, porque a preparação para o Mundial é extremamente cansativa. Então, decidi, em conversa com o meu treinador, não continuar, ele, passado uns meses, convidou-me para começar a dar treinos no clube”, revelou, confessando que foi fácil mudar o chip, porque sempre gostou de ajudar os mais pequenos nos treinos.

Com o passar do tempo, percebeu que queria ser treinador de ginástica. Hoje, Alfredo Pereira foge (ou tenta) às comparações, mas admite agora algo que nunca disse aos seus atletas: “Sinto orgulho por estarem a fazer coisas que nem eu fiz. Eles não têm essa noção, não têm essa ideia, é mesmo satisfatório. Qualquer dia digo-lhes para eles também terem uma ideia da evolução e de onde estão a chegar”, confessou o treinador, que no GuimaGym treina atletas de várias idades. A mais nova tem 8 anos e a mais velha 19.

Salvador Oliveira e Benedita Lopes são dois deles. Em abril venceram o escalão Youth na Competição Europeia por Grupos de Idades de Ginástica Acrobática. A dupla partilha o sonho da arquitetura e da ginástica e treina três horas por dia, seis dias por semana. “É uma vitória deles, mas também é minha, é nossa, é do clube e dos pais. A acrobática é mesmo um investimento conjunto. Os pais que levam as crianças aos treinos, investem, pagam material e tudo mais. E do clube que aposta em mim e neles, e ajuda com serviços de fisioterapia, ajuda e tudo mais. Foi uma vitória de todos. Eles dão a vida pela ginástica. Eu também, literalmente, a ginástica é a minha profissão, a minha paixão, chego a gastar do meu próprio dinheiro para ajudar. Eles treinam, mas sou eu que decido as coreografias. Sou eu que faço, decido os fatos...”

Há fatos que custam 300 euros e os atletas de alta competição precisam de mais do que um. Por isso , o treinador, tenta ajudar nas despesas. Além de ter feito workshops para retirar ensinamentos para elaborar as coreografias, também desenha e faz alguns fatos, com materiais mais acessíveis à bolsa dos pais.

Na ginástica, os exercício são, por excelência, uma ode à beleza corporal em movimentos. E ele tem um grupo que já trabalha num inédito triplo mortal em competição e um par de meninas que também estão a criar um elemento novo. Agora é necessário mandar os vídeos, as fotos para o Comité Internacional para eles avaliarem se é possível fazê-lo.

A modalidade envolve muito impacto, muito treino e ocupação, e para um ginasta ter apoios é preciso chegar a um patamar alto e por isso muitos jovens talentos desistem. Apesar disso, a ginástica acrobática é a disciplina com mais ginastas e isso só mostra o quão grande é em Portugal, que “já é uma potência europeia e mundial”.

Mas falta deixar de ser o parente pobre da ginástica. “A comunidade da acrobática está um pouco revoltada depois de saber que nos Jogos Olímpicos Los Angeles 2028 vão inserir uma nova modalidade artística, uma competição mista, que é basicamente o que existe há anos na acrobática, uma modalidade bonita, espetacular, digna de qualquer transmissão televisiva. Por isso, não percebo o porquê da acrobática ainda não ser Olímpica”, confessou Alfredo, pedindo à Federação Internacional para dar esse passo e conceder à acrobática a possibilidade de ser Olímpica.

Há 28.421 ginastas e, desses, 5357 são praticantes de Ginástica Acrobática. Em Portugal não se ganha dinheiro com a ginástica. Há uma ou outra competição nacional ou internacional com prize money para os primeiros classificados de 4/6/10 mil euros, no máximo. Por cá “talvez 1000 euros tenha sido o máximo e dividido pelos atletas vencedores”. Em competições pequenas, o prémio pode ser de 150 euros por ginasta: “Não paga o dinheiro que se gasta.”

Sentiu desconforto pela cor da pele

Se na ginástica artística há muitos atletas negros - as melhores ginasta, Simone Biles e Rebeca Andrade, são negras - na acrobática não é comum. Alfredo Pereira é negro e treinador de ginástica acrobática. “A cor da pele não devia ser tema, penso que até sou o único em Portugal. Nunca me senti discriminado diretamente e nunca o senti na ginástica, mas é impossível não o ter sentido na vida social, mas como sou uma pessoa confiante, imponho-me também bastante perante situações de desconforto com base na raça. Senti e sinto, que profissionalmente tenho de trabalhar o dobro ou mais para ser aceite, não por todos, isso é utópico, mas pela maioria”, confessou o treinador, que nunca se expôs socialmente, também para se proteger.

Não valoriza, mas também não esquece as circunstância em que sentiu diferença de tratamento pela cor da pele, como numa ida a uma escola dar uma aula de ginástica. “O clube tem parcerias com escolas e já cheguei a algumas onde se calhar não esperavam um professor negro. Não foi nada agressivo ou intolerável, mas aquele comentário ingénuo ou não, que nos faz sentir isso, que não esperavam um negro.”

Já aconteceu perder a calma (e se calhar a razão): “Existe discriminação no dia a dia e em coisas pequenas. Por vezes dá aquela raiva e acho que tenho de tentar fazer as pessoas perceberem que me sinto mais português do que cabo-verdiano e que este ou aquele comportamento ou comentário está errado, mas no meu caso tem sido esporádico.”

Mas ver a extrema-direita e a desinformação a crescer preocupam-no como ser humano: “A discriminação é ilógica entre pessoas. Torna-nos mais fortes, mais resilientes, mas cansa, desgasta, estamos em pleno século XXI e cada vez mais Portugal tem povos de outros mundos.”

isaura.almeida@dn.pt

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