Tomás Jesus é o “ninja”, um “craque”, nas palavras de Nani, que o recebe dessa forma na Nani Football Academy, a escola de futebol em Fernão Ferro, município do Seixal, que é “um sonho” tornado realidade para dezenas de crianças e adolescentes dos quatro aos 16 anos de idade e que será o projeto pós-carreira do internacional português que, no domingo, anunciou o adeus aos relvados aos 38 anos. .Percebendo que o jovem veste de branco no dia em que todos equipam de azul, Nani pergunta-lhe pelo equipamento principal e ouve um “está para lavar”. .A explicação basta-lhe, pois já sentiu o mesmo na pele e sabe o que é nem sequer ter equipamento. “No meu primeiro treino, chovia, estava de camisa de botões, sem meias e de sapatos por não ter chuteiras. Mas assim que a bola rolou, comecei a correr sem parar, sem medo das poças de água no campo. Os treinadores chamaram-me e perguntaram-me se não tinha roupa de treino para voltar no dia a seguir”, conta o agora ex-jogador ao DN, lembrando que, apesar das dificuldades, as memórias desse tempo são de alegria por culpa do futebol..O talento e a raça estavam lá e levaram-no até ao Sporting, depois ao Manchester United e à Seleção Nacional, camisola que foi como uma segunda pele para o campeão europeu em 2016: ”Ver os meu colegas a rir de mim não me fez parar de tentar ser jogador. Eu estava feliz por estar ali. Comecei a ir aos clubes treinar e consegui criar esta história fantástica que está toda por trás da minha vida e é maravilhosa.”.Esta época, depois de mais de uma década a jogar no exterior, Nani voltou a Portugal, para representar o Estrela da Amadora, clube onde não tinha conseguido jogar na infância ou adolescência por nem sequer existir legalmente. Filho de emigrantes cabo-verdianos já nasceu na Amadora, mas não tinha documentos. Uma contrariedade que Luís Carlos Almeida da Cunha (Nani) driblou já adolescente, tal como fez até há bem pouco tempo com os adversários em campo..O regresso permitiu-lhe também dar asas ao sonho antigo de abrir uma escola de futebol, o que conseguiu através de um protocolo com a Associação de Amigos do Pinhal do General, em Fernão Ferro, e com a Câmara Municipal do Seixal, concelho onde vive: “O futebol deu-me muito e sei que para as crianças poder lidar com um jogador é importante. Sei que muitos deles gostavam de um dia chegar ao patamar onde eu cheguei e isso deixa-me muito feliz.”.Não dá apenas o nome à placa, Nani envolve-se. Vai aos treinos. Dá atenção e respeita cada um daqueles pequenos miúdos equipados com as cores do seu sonho e que olham para ele como se fosse “um extraterrestre muito fixe”, que pesquisaram intensamente no YouTube e outras plataformas digitais. Todos os dias o fazem lembrar daquele drible, aquele golo, o mortal de celebração do golo... .O respeito é recíproco. Tomás Jesus, o extrovertido “ninja” de 12 anos chega cedo ao treino e aproveita para revelar ao DN a tática da felicidade: “O Nani diz para driblar, marcar golo e ser feliz. Ah!, e ir defender...” Depois pede autorização para entrar em campo e dar uns toques. Nani deixa, mas pede troca de passes e não remates para a bola não ir parar à zona de treino dos frágeis traquinas, onde está, entre outros, Kiko (Francisco Lopes), que, no alto do seu meio metro e seis anos de idade cheios de personalidade, se orgulha de fazer “rasteiras aos mais pequenos” e marcar mais golos do que o primo..De sapatos como há 30 anos.A urgência com que os miúdos pedem a atenção do internacional português é comovedora, até para a assistência, os pais, que do lado de fora esperam o final do treino. Ficar fora do campo é que não é para Nani. Mesmo de camisa e sapatos (agora por opção e estilo, a propósito da reportagem do DN), não resiste a entrar em campo, tal como o fez no primeiro treino há uns 30 anos. A primeira ação do “treinador Nani” é importantíssima... apertar os cordões da chuteiras de um iniciado, antes de lhe ensinar a passar o pé sobre a bola sem que ela deixe de rolar. .“O campo é o meu habitat. Gosto muito disto e tento passar algumas coisas boas que aprendi [risos]. Quando me perguntam se podem ir fazer xixi ou saem em direção aos pais e regressam com uma bolacha, o que posso fazer? Divirto-me muito com eles, têm uma energia muito positiva”, confessa o ex-jogador, que espera levar um pouco da magia do futebol de rua à sua Academia..E que magia é essa? “Na rua éramos nós a fazer as nossas regras, era ali que aprendíamos a desenvencilhar-nos de todas as situações, e mesmo os tempos sendo outros, nestas idades é preciso dar liberdade às crianças para se expressarem em campo, dizer que podem fintar, perder a bola...”, atira Nani, que deseja dar essa mesma liberdade aos filhos. .Lucas, o mais velho, joga no Sporting: “Dizem que filho de peixe sabe nadar, mas vamos lá ver se ele nada bem (risos). Vão sempre fazer comparações, mas ele está a desfrutar daquilo que gosta de fazer e o mais importante é que o pai vai sempre apoiar quer ele decida ser jogador ou não.”.Os proclamados valores da formação leonina são também o mantra a seguir na escola de Nani. O respeito pelos companheiros e treinadores, aprender a jogar em equipa, entender as diferenças uns dos outros, o que é certo ou errado são a regra e não a exceção. “Queremos que joguem futebol, mas que sejam excelentes seres humanos. Temos que prepará-los também para o dia a dia, porque muitos nem vão ser jogadores. O nosso objetivo é formar cidadãos que mais tarde possam vir a servir o país, porque o desporto e o futebol permitem isso. Se não fosse o futebol, eu podia ter ido por caminhos que não interessam a ninguém, por isso quero usar as coisas boas que aprendi para ajudar estas crianças a realizar o sonho delas”, confessa..A inscrição da Nani Football Academy na Associação de Futebol de Setúbal só acontecerá para a próxima época. Esta temporada é para aprender, desfrutar e fazer uns jogos amigáveis. “O objetivo não é formar Nanis. A Academia tem um fundamento assente nos valores da formação, com uma forte componente social, permitir a prática saudável do desporto, do futebol e sem qualquer tipo de exclusão. Esse é o grande objetivo”, segundo Rui Santos, diretor da Academia que ajudou a erguer em apenas alguns meses..“Treinador? Porque não?”.Nani perdeu o pai há menos de um mês e isso aliado ao desgaste físico levou a que deixasse de jogar a meio desta época: “É a altura certa. Já não sou o jogador que fui. Não posso ser metade Nani. Já não é o meu momento. É o momento para outros, mais jovens.” .Queria terminar a carreira a sentir-se bem, realizado, para dar seguimento a outros projetos, como a academia. Foi para isso que lutou e trabalhou ao longo dos anos, para criar as condições para depois do futebol poder fazer o que lhe apetecer, continuar a ser feliz e ter tempo para fazer coisas boas como a família e os amigos: “Porque senão não faz sentido.” .E ser treinador está nos planos? “Porque não? Acho que o maior conhecimento do futebol eu já tenho, mas, de momento, a prioridade é a academia”, garante o ex-jogador, que ainda jogou com os agora técnicos dos clubes mais importantes da sua carreira: Ruben Amorim (hoje no Manchester United) e João Pereira (Sporting). .isaura.almeida@dn.pt