1.º Dezembro. O clube onde o bom comportamento é uma vitória
Tasslim Sualehe acredita num futebol com valores e adeptos que apoiam sem insultar o árbitro e os adversários. Época começou com formação em Ética e Desporto para diretores, atletas e pais.
No 1.º Dezembro, os insultos ao árbitro são intoleráveis. O mau comportamento dos jogadores é punido. Os pais são colocados no papel dos filhos. Os maus adeptos são convidados a sair da bancada. Há formação em Ética e Desporto e não há custos com multas por mau comportamento desportivo.
No histórico clube de Sintra, fundado no dia 1 de dezembro de 1880 (143 anos), sob foral do Rei D. Carlos, e hoje recordista de títulos no futebol feminino (modalidade que espera resgatar um dia), a boa conduta desportiva começa nos dirigentes. E muito por culpa da entrada em cena de Tasslim Sualehe, o administrador da SAD, que acredita no sucesso desportivo sem abdicar dos valores: "É remar contra a maré? É. Mas não é por isso que as nossas equipas deixam de ganhar. Mesmo com um dos orçamentos mais baixos do Campeonato de Portugal, os seniores estão em 1.º na Série C, a equipa de juniores A está a lutar para subir aos Nacionais, a de juvenis está a lutar para subir à 1.ª Distrital, a de iniciados está a lutar para subir aos Nacionais", defendeu o líder dos guerreiros de Sintra desde 2021.
A época 2022-23 começou com formação em Ética e Desporto para diretores, atletas desde os Sub-5, treinadores e pais. "Num dos exercícios, os atletas dos Sub-10 aos Sub-17 tinham de orientar os pais, que estavam vendados à sua frente a uns dois metros de distância, para caminharem na direção deles, contornando um obstáculo, seguindo as suas indicações. Até aqui tudo bem. Depois, quando lhes disse "Agora todos ao mesmo tempo" foi o caos. Claro que se tornou numa galhofa, mas os pais ficaram com o essencial: não conseguiam ouvir o filho entre o barulho global. E isso é o que acontece num jogo quando o treinador quer dar uma indicação e o pai dá indicações ao mesmo tempo. Um pai a dizer "sobe", o outro a dizer "ataca" e outro a dizer "vai à linha", já para não falar da expressão "Vai para cima dele". Isto multiplicado por 15 ou 20 pais e com o miúdo a ter de se abstrair e ouvir o treinador", contou ao DN Tasslim.
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Segundo o dirigente, basta ir a um jogo da formação para se perceber essa "triste" realidade, entre muitas outras, que só dão má fama ao desporto rei. "Um estádio não é um anfiteatro, nem o futebol é como ir ao teatro e, por vezes, [os familiares] são os únicos nas bancadas e sem eles os miúdos não teriam apoio, mas, num jogo dos Sub-12, ouvir um avô exaltado chamar nomes ao árbitro num lance de possível penálti isso ajuda em quê?", questionou, recordando a "perplexidade" de um técnico norte-americano do desporto universitário por ver dois polícias num jogo de Sub-10: "Isto diz muito de quão errados nós, portugueses, estamos. A começar por nós, dirigentes. Se é impossível ter um desporto mais ético? Não."
Esse ideal tem de envolver todos, desde atletas, aos pais. "Um miúdo que costuma jogar a avançado, jogou a extremo num jogo e, quando passou para a posição habitual marcou logo um golo. A mãe festejou e ficou contente, mas atirou logo: "Pois, a posição dele é avançado". Nessa ouvi e calei, mas quando encontrei o miúdo num treino perguntei-lhe o que fazia no 1.º Dezembro e ele respondeu que era "jogador". Contei-lhe o episódio da mãe no sentido de lhe explicar que comentários como aquele o podiam prejudicar e que é melhor jogar a extremo do que ser avançado no banco."
Mas isso não é ser demasiado picuinhas? Não é um comentário banalíssimo? "Sim, mas o treinador também é humano e pode ser influenciável. Afinal, o comentário vem da mãe e pode ser encarado como reflexo das queixas do filho em casa. Além disso têm de saber estar disponíveis para jogar em qualquer posição e colocar a equipa à frente dos interesses pessoais", argumentou o dirigente, que vê na pedagogia um valioso instrumento de trabalho para os dirigentes.
E a experiência própria ajuda. "Ninguém tira a licenciatura para ser pai. Eu também sou pai, de ex-atletas de alta-competição, e também cometi erros de pai. Errei imenso, aquilo que eu achava que era motivação de bancada era perturbação de bancada. Ficava nervoso e eles viam-me a fumar. Aprendi com o erro, se persistisse nele já era burrice e agora tento que outros não os comentam. Se calhar os meus filhos não foram mais longe por causa de alguns comportamentos que eu tive", admite, num mea culpa de quem percebe que os pais-adeptos são caso ambíguo.
Insulto não é apoio
Tasslim vê os jogos no meio do adeptos, nas renovadas bancadas do 1.º Dezembro, com capacidade para 500 pessoas, e já perdeu a conta das vezes em que chamou a atenção para atitudes ou linguagem excessivas e ouve o que não gosta: "Num jogo Sub-12 perdemos com o Atlético e a mãe de um atleta virou-se para mim e disse: "Pois, os outros podem pressionar os árbitros, nós não podemos fazer nada". Eu respondi-lhe: "Perdemos porque eles marcaram mais"."
O dirigente tem plena noção da abrangência das intervenções cívicas nas bancadas e de como isso é visto por alguns pais e adeptos, mas recusa a ideia de ser visto como "ditador". "Já me chamaram maluco e outras coisas, mas o meu comportamento não vai mudar. Eu não sou o dono disto tudo, eu sou o presidente da SAD e felizmente a direção e o presidente do clube [Francisco Gomes] e os amigos de infância que investiram comigo no clube comungam dos mesmos valores. E quando não for de acordo com os meus princípios então saio."
Para quem investiu milhares de euros na recuperação de um clube local em claras dificuldades de sobrevivência, o negócio parece não ser tudo. Em Sintra segue-se a política da Premier League e aplica-se castigos aos adeptos. Já teve de lembrar um ou dois que, ao organizador do espetáculo, reserva-se o direito à admissão, por isso, quando um adepto se porta mal pode ser convidado a sair do estádio (já aconteceu) e, se insistir no erro, impedido de entrar.
Isso não significa que os adeptos, os pais, os treinadores e os jogadores não se excedam uma ou outra vez. Mas, se na formação faz uso da pedagogia, nos seniores a conversa de Tasslim é outra. "Tivemos um jogo com o último classificado, em Arronches, perdemos 2-1, e deixámos de ser líderes. Não estamos habituados a perder e, no final do jogo, gerou-se uma enorme confusão. A primeira coisa que fiz no treino seguinte foi reunir todos e dizer que não podia admitir que aquela cena lamentável se repetisse e que, à segunda, a porta da rua estava aberta. Claro que foram provocados, claro que houve atenuantes, mas temos de saber controlar-nos."
Exige mais dos seniores porque eles "têm de dar o exemplo". E o regulamento interno deixa bem claro que as multas aplicadas ao clube por mau comportamento saem do bolso de quem prevaricar. José Fortes, o treinador de guarda-redes, já se livrou de uma por ter 30 anos de cadastro limpo. "Isso também diz muito dos valores de quem escolhemos. Seria a primeira multa do ano, mas eles sabem que se vierem é para debitar na conta deles", revelou o dirigente, garantindo que não se mete no trabalho do treinador Rui Maside - "Nem sequer peço para meter o meu sobrinho a jogar" [risos]. Até porque um mau resultado pode ser tolerado, o mau comportamento é que não: "Não posso ter um treinador no banco a berrar com o árbitro. Se o fizer uma vez, passa, duas talvez não..."
Sem receio que os adversários explorem o lado cortês das suas equipas, o administrador da SAD do 1.º Dezembro aposta no controlo emocional e no profissionalismo da arbitragem. E quando os jogadores desabafam sobre o que consideram ser erros do árbitro, Tasslim Sualehe lembra-lhes que o erro não é exclusivo do juiz, nem este é responsável pelos golos falhados em frente à baliza.
Next é parceira: O sonho de jogar e estudar nos EUA
Português nascido em Moçambique, Tasslim Sualehe, hoje com 54 anos, defende que o discurso não devia ser exceção, mas regra. Diz que faz parte da formação dele como pessoa e da cultura desportiva que adquiriu nos EUA. Chegou a jogar futebol, mas quando disse à mãe que queria deixar de estudar para ser jogador quase apanhava. Continuou a jogar às escondidas, formou-se em gestão e investiu numa empresa de informática. E quando foi ao Brasil ajudar num projeto de uma empresa que estava a desenvolver sites para jogadores viu alguns atletas a convidar colegas para irem jogar para os EUA com bolsas universitárias.
Tinha encontrado a forma ideal de continuar ligado a futebol sem deixar a formação académica e fazer a mãe feliz. Criou a Next Level Sport, empresa que já enviou quase 400 atletas para os EUA com bolsas universitárias. Tentou vender a ideia a clubes, mas a desconfiança foi grande e sentiu necessidade de se aliar a um clube - primeiro ao Abóboda, agora ao 1.º Dezembro.
Conciliar os estudos com o futebol é o sonho de muitos pais, mas privilegiar a formação académica para lá do 12.º ano quando um clube oferece um contrato, que, muitas vezes, é superior ao salários dos pais, é difícil de compreender aos 16 ou 17 anos. Quando Vicente Matheus foi promovido à equipa de juniores do Sporting, o pai considerou que a formação académica era mais importante. Era aluno com média de 19,9 no st Julien"s e conseguiu uma bolsa na Universidade de Chicago - Top-3 do mundo em Economia.
Depois há casos como o de Neemias Queta, em que o sucesso desportivo se sobrepôs. Foi estudar para o Utah e acabou na NBA. E João Moutinho, que foi estudar/jogar futebol para Ohio acabou como N.º1 no draft 2018 da MLS e agora está no Spezia (Itália). Ou Maria Alagoa, que é Campeã Universitária de Futebol pelos Florida State e Internacional Sub-19.
Tasslim acredita que a formação académica não rouba talento ou oportunidades. E dá o exemplo do sobrinho, no Sporting, que sendo juvenil e jogando também nos juniores, a certa altura foi encostado à parede pata trocar as aulas presenciais pelo online. "Embora fique bem ao Sporting, Benfica e FC Porto dizer que o estudo é muito importante, a forma como o fazem é mesmo para eles desistirem dos estudos e se focarem só no futebol, dizendo-lhes: 'Ou investes tudo nisto ou não chegas lá". É imoral, embora eu compreenda que estão a zelar pelo interesses do clube e até dos atletas e dos pais. Mas, se formos ver, dos 20/30 atletas, só um ou dois acaba realmente a ser escolhido e recompensado por essa entrega."
E os dados não mentem. Segundo um estudo de 2019, do Instituto Politécnico de Bragança, só 58,5% dos 424 dos jogadores da I e II ligas e da I Liga Feminina ouvidos tinham terminado o Secundário. E desses, apenas 8,2% tirou um curso superior.
isaura.almeida@dn.pt
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