Que ensinamentos podemos retirar da 97ª cerimónia dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas? E, em particular, da vitória de Anora como melhor filme de 2024? Vale a pena arriscar um pequeno desvio e lembrar que, ano após ano, os Óscares são objeto de reações de amor e ódio em proporções idênticas (embora as segundas tenham sempre a proteção do cinismo cultural dos nossos dias). Ao mesmo tempo, em paralelo, os Razzies — concebidos para distinguir os “piores filmes do ano”, numa tradição (?) iniciada em 1981 — passam incólumes no meio dos pingos mediáticos. Dir-se-ia que parece ser chique, divertido ou apenas festivamente estúpido celebrar o cinema através daqueles que suscitam os juízos negativos de alguns notáveis... Daí que, quanto mais não seja para memória futura, seja imperioso registar que nos Razzies deste ano, atribuídos a 28 de fevereiro (sempre com chancela da Golden Raspberry Foundation), Francis Ford Coppola foi eleito o “pior realizador do ano”. Escolhido pelo seu Megalopolis, o realizador de clássicos como O Padrinho (1972) ou Apocalypse Now (1979), este ano ignorado nas nomeações dos Óscares, achou por bem celebrar o evento com corajosa ironia, reconhecendo “a honra muito especial que é ser nomeado como pior realizador, pior argumento e pior filme num tempo em que muito poucos têm a coragem de contrariar as tendências dominantes do cinema contemporâneo”. Que talentos? .Para Coppola, trata-se de recusar “as regras cobardes” de uma indústria que desistiu de apostar nos “jovens talentos ao seu dispor”, sendo incapaz de “criar filmes que sejam relevantes daqui a 50 anos” — é caso para dizer que ele sabe do que fala. Ainda assim, ao consagrarem Sean Baker e o seu Anora, os Óscares deste ano acabam por contrariar, pelo menos, uma parte do pessimismo de Coppola. Nascido em 1971, Baker não será um símbolo “juvenil” — como poderá ser a protagonista do seu filme, Mikey Madison, Óscar de melhor atriz, à beira de completar 26 anos —, mas é um facto que, com os seus 6 milhões de dólares de orçamento e uma gestação estranha ao espaço dos grandes estúdios, Anora, goste-se muito, pouco ou nem por isso, é mesmo um símbolo exemplar da produção independente. Como o é O Brutalista, sem dúvida o que mais e melhor encarna o espírito primitivo de Hollywood: não a exploração do fait divers, à maneira de Anora, mas as subtilezas de um fulgor narrativo em que saga individual e fresco histórico são duas faces da mesma moeda — e, nessa medida, do mesmo conceito de espectáculo. .Com uma nuance que também não podemos ignorar: já não se trata de uma produção independente à maneira dos anos 1960/70, celebrando a energia de uma cultura (ou para usarmos o termo da época, cunhado pelo grande Theodore Roszak: uma contracultura) que, de facto, nascia de uma postura criativa apostada em discutir os pressupostos narrativos e, no limite, políticos das linguagens clássicas de Hollywood. Agora, na sua imensa variedade, com resultados inevitavelmente desiguais, os independentes são aqueles que tentam encontrar os seus lugares nos interstícios de dois tipos de formatação: o sistema dos estúdios tradicionais e a equívoca pluralidade das plataformas de streaming. Anora junta-se a uma lista de produções de raiz independente que pontuaram a última década de Óscares. Ou seja: Moonlight (2015), Nomadland (2019), CODA (2020) e Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo (2021). Sem esquecer que, pelo meio, aparece o sul-coreano Parasitas (2018), primeiro título de língua não-inglesa a arrebatar o Óscar máximo (para mais acumulado com o Óscar de melhor filme internacional). Daí que seja também obrigatório destacar as distinções de melhor filme internacional e melhor filme de animação para Ainda Estou Aqui e Flow - À Deriva, respectivamente. Ainda Estou Aqui entra para a história e para a mitologia dos Óscares como o primeiro título brasileiro a arrebatar um Óscar; proveniente da Letónia, Flow - À Deriva bate em toda a linha os “tubarões” dos desenhos animados, Pixar, Disney e Universal Pictures, todos também representados nas nomeações. O valor da juventude .As tendências, e também os impasses, de toda esta conjuntura poderão, talvez, formular-se de outro modo. A saber: tendo em conta que a persistência de Hollywood nos circuitos do cinema mundial (e, em particular, no nosso imaginário cinéfilo) são indissociáveis das estrelas, onde está, nos dias que correm, o star power? Na sua estreia como apresentador, rentabilizando um know how que provém de muitos anos de televisão, Conan O’Brien foi exemplar na definição do espaço possível para a celebração do espectáculo e da renovação da mais antiga palavra de ordem: “The show must go on!” Mas como “continuar o espectáculo” se a própria comunidade artística que o produz parece descrente nos seus resultados? Afinal, Dune: Parte Dois e Wicked, precisamente os exemplos mais diretos do aparato dos grandes estúdios (e dos seus orçamentos monumentais), não passaram das chamadas categorias técnicas, com dois Óscares para cada um deles... Além de que A Complete Unknown foi totalmente ignorado pelos votantes: oito nomeações, zero Óscares! A evocação de Gene Hackman por Morgan Freeman ficou como um momento de tocante celebração, não apenas do ator, mas da dimensão comunitária da arte de fazer filmes. Mas que dizer da apresentação do Óscar final (melhor filme) pelo par Meg Ryan/Billy Crystal? Mesmo não esquecendo que Crystal é uma figura central na história das apresentações dos Óscares (o que Conan sublinhou), mesmo tendo em conta que o par evoca o lendário Um Amor Inevitável (que, 36 anos depois, as gerações mais novas talvez nem saibam o que seja), a sua presença no palco do Dolby Theatre, para encerrar o espectáculo, constituiu o perfeito, aliás, imperfeito anti-clímax. Nesta perspectiva, a única genuína estrela da noite, não anunciada, foi Mick Jagger, a apresentar o Óscar de melhor canção. De forma breve, descontraída e hiper-profissional, ele veio mostrar e demonstrar o poder icónico de uma star que no ofereceu a mais deliciosa brincadeira da noite. Acontece que Bob Dylan (83 anos) estava para entregar aquele prémio, mas achou que deveria ser alguém mais jovem a fazê-lo... Daí a disponibilidade de Jagger (81 anos). Viva a juventude!