Yoshitomo Nara, um japonês do mundo no País Basco
A simplicidade aparente do traço não exclui a capacidade de inquietar quem olha a arte (pintura, escultura e instalação) de Yoshitomo Nara. Inaugurada na passada 6.ª feira, no Museu Guggenheim de Bilbau, esta é a primeira exposição antológica do artista japonês realizada na Península Ibérica e compreende 128 obras de períodos diferentes, a última das quais, concluída em 2023, já foi feita de propósito para esta mostra, que, do País Basco, passará a Baden-Baden, na Alemanha, e a Londres.
“Os meus primeiros trabalhos foram baseados apenas em instinto, os mais recentes já beneficiam de muitos estudos e reflexão”, disse o artista na apresentação da exposição à imprensa internacional (para além dos jornalistas portugueses e espanhóis, estavam também britânicos, norte-americanos e italianos, o que dá, de algum modo, a dimensão do evento). Na verdade, se a forma se mantém coerente dos anos 80 até 2023, com um predomínio de figuras infantis, de género indefinido, a espessura enriqueceu-se com apports vários, desde o expressionismo alemão à música punk e rock. Basta, aliás, acedermos à instalação O meu quarto de desenho (presente na exposição) para encontrarmos a música, sobretudo dos anos 80, que Nara transportou para o seu imaginário: Beatles, David Bowie, The Turtles, Nirvana, Rádio Futura, Clash, etc (ouvir no Spotify Yoshitomo Nara by Guggenheim).
A música pop/rock e underground parece ter estado sempre muito presente na vida do artista. Como nos conta a comissária da exposição Lucía Aguirre, Nara nascido em 1959 nos arredores de Hirosaki, foi muito influenciado pela rádio das forças norte-americanas estacionadas no Norte do Japão. “Ele próprio construiu uma rádio na sua adolescência”, conta ainda a comissária.
Filho de um sacerdote xintoísta, o jovem Nara estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes de Aichi. Mas seriam as viagens à Europa, já nos anos 1980, que marcariam decisivamente a sua arte e mundividência. No final dessa década, mudou-se para a Alemanha, onde viveu durante 12 anos, com viagens regulares a outras cidades europeias como Londres, Amsterdão, Londres ou a Madrid da época de ouro da movida. Como escreve Lucía Aguirre no catálogo da mostra: “Viveu uma temporada na Berlim Ocidental descrita por Christiane F., na sua autobiografia Os Meninos da Estação do Zoo. (…) O conceito do que valia a pena mudou para Nara. Tinha adquirido novas perspetivas e queria pôr em causa tudo o que aprendera até aí. Disse então: ‘Ao sair do Japão dei-me conta que ver as coisa a partir do Monte Fuji é completamente diferente de vê-las a partir do Evereste’.”
Em 2000, regressou ao Japão natal, para uma nova etapa de vida e, consequentemente, da obra. As influências da sua infância, nomeadamente a proximidade com a natureza própria do meio xintoísta em que cresceu, regressaram, com um bucolismo terno. Mas, em março de 2011, o grande terramoto que assolou o leste do Japão, o tsunami que dele resultou e o acidente nuclear de Fukushima Daiichi têm nele um grande impacto. Adquire uma consciência nova do estado desfavorecido das zonas rurais, do ponto de vista económico e mesmo cultural, quando comparado com grandes metrópoles como Tóquio. Ao mesmo tempo que passa a promover iniciativas artísticas no campo, Nara modifica a sua própria linguagem, que se torna mais próxima do ativismo, sobretudo após a obra From the Bomb Shelter (2017), inspirada no filme de 1953, Hiroshima, de Hideo Sekigawa.
Embora a exposição não esteja organizada sob um ângulo cronológico, estas são as obras reunidas na última sala da exposição. Quadros como Menina da Paz, Porta do doce lar, Stop the bombs ou Flor morta remasterizada em 2020 dão-nos conta de uma inquietação latente, bem visível nos olhos das personagens, a quem o artista conferiu sempre todo o protagonismo. Mas a obra mais impressionante deste período é talvez a instalação Fonte da Vida, em laca, uretano e plástico, em que um fio de lágrimas infantis corre para uma chávena gigantesca. Esta exposição pode ser visitada até 2 de novembro e estabelece um interessante diálogo com outra mostra atualmente no Guggenheim: a da pintora Martha Jungwirth.
O DN viajou para Bilbau a convite do Museu Guggenheim