Voltando a usar a película de 16mm
Está por esclarecer o modo como a normalização dos telemóveis no nosso quotidiano - na obtenção de imagens fotográficas ou em movimento - tem contribuído para a perceção corrente das narrativas cinematográficas e, em particular, para novas formas de fazer filmes. Para o melhor? Sim, sem dúvida: lembremos o exemplo de Unsane/Distúrbio (2018), admirável thriller realizado por Steven Soderbergh, com Claire Foy no papel central, filmado com um iPhone 7. Mas também para o pior: por vezes, em alguns filmes, usando ou não telemóveis, há quem acredite que a "agitação" permanente da câmara é um princípio automático e coerente de encenação...
Assim acontece com Sweet Thing, filme de Alexander Rockwell, nome emblemático da produção independente dos EUA, que entre nós recebeu o subtítulo Infância à Deriva. Não que se trate de um objeto rodado com telemóvel. Num texto que tem acompanhado a divulgação do filme, Rockwell diz mesmo que para ele, dada a "natureza experimental" do projeto, era importante possuir os meios que, realmente, conseguiu. A saber: película de 16 mm, preto e branco.
O "sentimento intemporal" que Rockwell diz ter procurado confunde-se com essa noção, hoje em dia muito na moda (a começar pelo espaço televisivo), segundo a qual a "colagem" da câmara à agitação dos corpos é suficiente para gerar uma ambiência de contagiante vibração dramática. Triunfa, assim, uma regra publicitária: a "velocidade" com que as coisas passam à frente da câmara parece ser o único índice de emoção disponível para o olhar cinematográfico.
O principal objetivo de Sweet Thing é dar conta do misto paradoxal, entre desamparo e alegria, com que Billie, uma adolescente, e o seu irmão mais novo, Nico, tentam lidar com a separação dos pais. A sua agitação física é seguida aos "trambolhões" pela câmara de Rockwell, de forma tanto mais redundante quanto o filme não resiste ao mais fácil dos clichés: quando os irmãos recordam ou protagonizam situações que correspondem a uma alternativa para a sua existência, as imagens passam a ser... a cores.
É pena que semelhante formalismo limite todos os resultados, até porque encontramos, aqui, uma familiaridade que não é apenas temática. Dir-se-ia que é mesmo estrutural. Isto porque Rockwell entregou o papel da mãe a sua mulher, Karyn Parsons, sendo Billie e Nico interpretados pelos filhos do casal: Lana Rockwell e Nico Rockwell. Há em todos eles, sobretudo a talentosa Lana Rockwell, uma relação cândida com a câmara que, nos melhores momentos, empresta a Sweet Thing a respiração própria de uma ficção gerada em ambiente de "reportagem".
Nessa perspetiva, talvez possamos dizer que o trabalho de Rockwell é herdeiro do cinema de John Cassavetes (1929-1989), também ele apostado numa visão enraizada no envolvimento muito físico com os atores - lembremos os exemplos de Shadows (1958) ou Faces (1968). As diferenças são muitas, é um facto, mas as bases técnicas são idênticas: 16mm, preto e branco.
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