Viva Pessoa
José Paulo Cavalcanti Filho responde aos artigos de Teresa Rita Lopes. Em causa a polémica sobre as acusações de racismo e esclavagismo feitas ao poeta Fernando Pessoa.
Viva Pessoa
Nem anjo, nem demônio, era só um homem comum.
A escolha de Fernando Pessoa, para ser patrono de um projeto de intercâmbio universitário na CPLP, continua repercutindo. No meio desse imbroglio, sem nenhuma razão, livro que escrevi - Fernando Pessoa, uma quase autobiografia. Só por ter reunido, em pouco mais de uma página, textos que Pessoa efetivamente escreveu. A favor e contra a escravatura. Para alguns, prova de que era a favor dessa escravatura. Para outros, inclusive eu, não.
Agora, uma vez mais, a eminente professora Teresa Rita Lopes aproveita para novamente criticar esse livro. Em dois artigos, neste DN, nas duas últimas semanas. É um horror voltar ao tema. Somos muito diferentes. A professora é notória por seu acendrado amor às polêmicas. Enquanto eu jamais fiz parte de nenhuma. Não é meu temperamento. Fui Ministro da Justiça e sempre considerei que a busca do consenso é virtuosa, para a Democracia. Bem melhor que o confronto. Sobretudo quando não faz sentido, como agora. Para uma pálida ideia do gosto excêntrico da professora, seu texto mais violento (assinado por Álvaro de Campos), o primeiro, ela escreveu sem ter lido o livro. No início de 2012. Só depois que respondi a seus insultos é que se dirigiu à Porto Editora. Disse que não aceitava comprar. E recebeu de presente um exemplar. Sem que se entenda como pôde criticar, sem nem ter lido. Sete anos depois, sete!, continua na sua fixação. Por razões difíceis de entender. Psicanalíticas, talvez.
Agora, vai mais longe. E delira. Diz que contratei "uma equipe que lhe escreveu o livro - ele nunca o escondeu". E ainda completa, de onde tirou isso? amigo leitor, "segundo sua (minha) própria informação". Falso, claro. Absolutamente. Diz, também, que um dos meus "colaboradores" dirigiu-se a ela "por e-mails várias vezes sob o pseudônimo de Álvaro da Horta". O que jamais ocorreu. Inacreditável. Novamente falso. E consume todo um artigo a dizer que Pessoa não era "imperialista". Quando não escrevi uma linha sobre isso. Essa é outra diferença, entre nós. O amor à verdade.
No Brasil, o Congresso Nacional escolheu seis brasileiros para integrar a "Comissão da Verdade". Com a tarefa de reescrever a história do Brasil, nos anos de chumbo da Ditadura Militar (diferente de Portugal, que não fez isso após a Revolução dos Cravos). Tive a honra de ser um de seus membros (apenas seis, num país com mais 200 milhões de almas). E deixamos uma obra memorável e respeitada, pela opinião pública, com quase 5 mil páginas. Não fazendo sentido ver na verdade uma profissão de fé e não ter compromisso com ela, nos livros que escrevo.
É inútil. Está no sangue juvenil, da professora, a arte de falar mal. Fazer o quê? E sempre num estilo mais próprio de colegiais. No caso específico do livro, apenas escrevi que Pessoa falou bem da escravatura. Porque falou. E não apenas em textos de 1916 e 1917, também num que escreveu mais maduro, em 1926, este publicado em revista que dirigia. Além de anotações, à caneta, que fez às margens de um livro de Godard, Racial Supremacy. No fundo, e isso disse, acredito decorrência da cultura de apartação em que foi criado na África do Sul. Contraditório (ele, Pessoa), escreveu também textos contra essa escravatura, sobretudo em inglês, assinados por Alexander Search. Tudo bem exposto no livro que escrevi. Trata-se de uma biografia. E, não, de algum tipo de interpretação psicológica das razões pelas quais terá escrito o que escreveu.
Para bem compreender o problema, talvez tudo decorra de uma questão de identidade. Sobre como nosso poeta é visto por dona Teresa. Invariavelmente, como um santo. Por ela posto num altar barroco. Encontra sempre uma forma de deixar confortável o autor e tudo que escreveu. Não é o que penso. Tenho que era alguém como todos nós. Com pecados e virtudes. Nem anjo, nem demônio. Um "Homem do Inferno", como na curiosíssima definição do amigo Eduardo Lourenço, "se acreditarmos em Dante". (Uma licença poética, senhora, favor não brigar com ele por isso). Trata-se apenas de um homem comum. Mas que escrevia como um Deus. E, bom lembrar, não sugeri ser um adepto da escravatura. Porque não era no íntimo, assim o tenho. Em razão de sua alma libertária.
Nunca disse que a primeira edição do livro que escrevi não tinha erros. Longe disso. Era mesmo inevitável, em 800 páginas, apesar do enorme esforço que fiz. Depois das edições brasileira (7) e portuguesa (2), cuidadosamente, anotei (só as procedentes) correções sugeridas por especialistas. Não foram muitas, ainda bem. E nada de verdadeiramente importante. Mas existiram. Daí decorreu uma Edição Revisada, usada como fonte nas edições internacionais. Já está em 12 países. É o livro, sobre Pessoa, mais traduzido e mais vendido no planeta. Premiado no Brasil (todos os prêmios, inclusive Bienal do Livro e Jabuti). Em Portugal (onde fui saudado pelo Presidente Mário Soares, que então não conhecia). E na Itália. Escolhido por unanimidade, pela Academia Brasileira de Letras (em que estão pessoanos ilustres, que inclusive trabalharam no Espólio de Pessoa), como Livro do Ano (de 2011). Cito critérios objetivos, para avaliar o livro. E, não, humores difíceis de entender. Perdão por referir esses fatos, não me sinto bem em fazer isso. Mas devo, por serem desconhecidos em Portugal.
Por fim, e tentando dar algum sentido ao debate, penso que mais razão tem José Barreto. Ao lamentar ter-se dado, ao público, "muitas centenas de coisas que Pessoa nunca pensou publicar". Melhor teria sido constituir comissão que pudesse fazer uma seleção crítica decente de todos os seus escritos, aqueles publicados e os que punha na Arca. Como aconteceu com Eliot. Muita coisa sem nexo, e de qualidade inferior, foi dada a público por conta dessa falta de articulação. Quando Pessoa merecia ser respeitado, pondo isso longe dos leitores. Entre esses textos, até pode ser, aqueles em que fala bem da escravatura.
Ao encerrar, e com relação à polêmica dessa escolha, claro que considero merecido ver Pessoa patrono de qualquer projeto em língua portuguesa. Trata-se do maior escritor nacional, depois de Camões. Talvez o maior de todos. O que deve nos levar a superar essas pequenas incompreensões e o por no lugar que sempre mereceu. O mais alto. Para ser reverenciado. Viva Pessoa.
José Paulo Cavalcanti Filho
70, da Academia Pernambucana de Letras