Vitalina Varela, um rosto para amar
Na sua chegada noturna a Lisboa, uma mulher cabo-verdiana, de olhos grandes e intensos, desce de pé descalço as escadas metálicas do avião. Não chegou a tempo do funeral do marido, que se enterrou há três dias, e, ainda mal pisou o chão, já outras mulheres lhe estão a dizer para voltar para trás, que não há nada para ela neste lugar. O seu nome é Vitalina Varela e dá título ao filme que Pedro Costa realizou tomando a sua presença magnética como pedra angular. Aqui, ela conta a sua história, narra-se a si própria, entre a vulnerabilidade do luto e o estoicismo da postura.
Se a dita entrada forte que tem no filme parece assinalar um momento inaugural, só o é simbolicamente. Na verdade, não se trata da primeira vez que deparamos com Vitalina no cosmos do cinema de Pedro Costa. Foi, sim, no anterior Cavalo Dinheiro (2014) que ela ofereceu uma nova página à narrativa dos imigrantes cabo-verdianos que tem vindo a moldar a fase mais recente da obra do cineasta (esta, só por si, em contínua correspondência interna). E já então a robustez do seu semblante, ao lado do de Ventura - outra "personagem" fundamental deste universo -, fazia adivinhar a necessidade de um capítulo à parte. Ela tinha ali um filme anunciado. Por isso mesmo, Vitalina Varela, que deu ao realizador um dos prémios máximos atribuídos ao cinema português, só poderia intitular-se assim, distinguindo a figura mágica, de carne e osso, que está no seu centro - esta, igualmente galardoada.
Vemo-la entrar na penumbra da casa do falecido marido e aí assentar a dor que carrega há mais de 25 anos, quando ele partiu de Cabo Verde para vir trabalhar para Lisboa e a deixou à espera. O que Vitalina guarda dentro de si traduz-se nas palavras que pronuncia, uma epístola de frustração, um monólogo que dirige ao espírito do marido, aproximando-se da(s) sua(s) memória(s) através dos traços físicos da casa e de uma profunda crónica de ausência. Toda a expressão do seu corpo é o sustentáculo da dimensão grandiosa que o filme adquire, à medida que a sua voz se junta à de Ventura - ele, desta vez, a assumir a personagem de um padre. Uma forma de transcendência acontece pela junção das suas palavras, e, de repente, o que é tão da ordem do terreno toca qualquer coisa de divino.
A escuridão que envolve praticamente todo o filme - o qual se poderia resumir na ideia de "uma imensa noite", como a certa altura se diz - atravessa desde sempre o cinema de Pedro Costa. Mas talvez essa escuridão se sinta ainda mais absoluta em Vitalina Varela, no modo como desafia a luz dos corpos desalentados, e como mantém a morte suspensa em torno dos vivos. Porém, o amor desenha-se no rosto desta mulher que afasta as trevas à sua maneira, para oferecer uma possibilidade de esperança. Um amor que parte da própria génese do trabalho de Pedro Costa, cada vez mais comprometido com a verdade alojada nos seus não-atores, que procura extrair a partir de um transe cinematográfico: as "cartas" que se vão ditando à posteridade (como aquela de Ventura em Juventude em Marcha) são as de quem não tem voz na vida real.
É a dignidade de seres humanos como Vitalina e Ventura que interessa à lente do melhor dos nossos cineastas contemporâneos. Veja-se como filma a narrativa dos próprios corpos, dos pés ao semblante, passando pelas mãos, no rasto da rugosidade do passado. Haverá alguém a olhar de maneira tão sublime o sofrimento concreto dos que sobrevivem à margem da sociedade? Como escreveu João Bénard da Costa a propósito do que se "vê" nos filmes de Pedro Costa: "Sobreviver é repetir incessantemente uma carta de amor." Ora Vitalina Varela é uma colossal carta de amor.
Excecional *****