Mercedes (Elisa Zulueta) e a liberdade que vem com um crime alheio.
Mercedes (Elisa Zulueta) e a liberdade que vem com um crime alheio.

'Vidas Paralelas'. Crimes reais e escapadelas   

Da realizadora chilena Maite Alberdi, duas vezes nomeada ao Óscar na categoria documental, 'Vidas Paralelas' é um terno conto feminista em que o crime de uma mulher regenera a vida bafienta de outra. Estreia-se amanhã na Netflix. 
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Numa era em que o género true crime se multiplicou nas plataformas de streaming, com abordagens quase sempre reduzidas à dimensão tétrica do assunto, é bom saber que ainda se encontram exemplos de algum engenho criativo. Caso do drama chileno Vidas Paralelas, baseado na história do crime real da escritora María Carolina Geel, que em 1955 matou a tiro o amante, em pleno salão de refeições do luxuoso Hotel Crillón, em Santiago, deixando o país, a imprensa e a opinião pública num verdadeiro alvoroço. Desde logo, pelos contornos esquisitos da sua ação: aparentemente, o assassinato de Geel sugeria uma “homenagem” a uma tentativa de homicídio ocorrida no mesmo local, em 1941, tendo então como protagonista uma poetisa do surrealismo, María Luisa Bombal, que também baleou (sem consequências fatais) um ex-amante. Acresce que, à época, a poetisa Gabriela Mistral, vencedora do Nobel, pediu ao presidente o perdão de Geel... 

A chegar esta sexta-feira à Netflix, depois da estreia no Festival de San Sebastián, El Lugar de la Outra usa-se da narrativa escandalosa, não para mergulhar nas interrogações profundas do que levou aquela mulher a fazer o que fez, mas sim para criar uma personagem fascinada com a vida da autora que cometeu o crime. É ela Mercedes (Elisa Zulueta), a tímida secretária do juiz responsável pelo caso, que, uma vez encarregada de ir ao apartamento da ré, acaba por se deslumbrar com os pertences de Geel e os indícios do seu modo de vida glamoroso, sofisticado e independente, guardando para si a chave dessa liberdade recém-descoberta. 

Mais especificamente: Mercedes torna-se uma versão doce de Mr. Ripley em frente ao espelho, ora usando as roupas, o perfume e o batom da escritora, ora lendo livros e dormindo numa cama onde não tem de ouvir o marido a ressonar... Ali, no contraste total com a sua vida de mulher submissa, ela deixa-se levar pela fantasia de ser outra pessoa – e ninguém a pode julgar por essas escapadelas à realidade. Como diz outra personagem a certa altura, “estamos todos cansados de ser quem somos.” Voilá! 

Assumindo a elegância e brilho do drama de época como meio caminho andado para aligeirar o tom e manter o filme naquela nota ágil do passo feminino, Vidas Paralelas confirma a realizadora Maite Alberdi – antes nomeada ao Óscar pelos documentários El Agente Topo (2020) e La Memoria Infinita (2023) – como uma das vozes chilenas mais empenhadas no resíduo da alegria. Uma voz capaz de trazer luz e graça a cenários, inclusivamente temáticos, que tendem a ser explorados pelo ângulo soturno. Sem grandes elaborações ou segredos, mas com manifesta eficácia no toque agridoce, esta produção de Pablo Larraín, que é também a candidata do Chile aos Óscares, converte-se num delicioso conto feminista, em que a sintonia das mulheres passa pelas mais perspicazes trocas de olhares e silêncios.  

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