"Verdadeiro milagre é a vice-presidente Francia Márquez, uma mulher negra"

Depois do grande sucesso que obteve com o seu romance <em>A Cadela</em>, a escritora Pilar Quintana volta a ser editada em português pela D. Quixote. Com ação nos anos 80, antes da violência impor-se no país, <em>Os Abismo</em>s dá o mote para uma conversa sobre a Colômbia de hoje.
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Quando se pensa na Colômbia e em Cali, a sua cidade natal e também cenário principal de Os Abismos, pensa-se em guerrilha, tráfico de cocaína, mas em todo o seu livro só há um pequeno momento em que esse universo surge, quando a família vai de férias e faz referência a uns guerrilheiros que passaram perto. Isso significa que, atualmente na Colômbia, é possível já um quotidiano em que a guerrilha e o narcotráfico esteja completamente longe da vida das pessoas? Ou só no passado?
Este romance passa-se antes de 1985 e nesse momento havia na Colômbia muitas bolhas onde se podia viver sem que a violência afetasse diretamente. O país entrou numa espiral de violência muito forte de 1985 para a frente e aí deixou de importar onde se vivia ou como se vivia, porque a violência passou a fazer parte do quotidiano. Mas nesse momento do romance não era assim, eu vivia no campo, nas montanhas de Cali, e havia guerrilhas por perto, mas nunca os vi e vivi lá muitos anos.

Mesmo o célebre cartel de Cali era algo de que já se falava, mas que não estava presente?
Estava a formar-se, mas não se cruzava com a nossa vida quotidiana. Até esse momento, a guerrilha era vista pelas pessoas colombianas como algo que não era inteiramente negativo. Estamos a falar sobretudo de uma guerrilha urbana, o M-19, constituída por jovens rebeldes que queriam um mundo melhor. Então os guerrilheiros eram um pouco vistos como heróis porque roubavam camiões de leite e distribuíam pelos bairros pobres. Era uma guerrilha que fazia golpes, mas sem matar ninguém e sem violência terrível. Portanto, este livro passa-se nesse momento.

Então se falamos de paz estamos a falar da Colômbia antes de 1985?
Sim, antes de 1985, porque quando o M-19 tomou o Palácio da Justiça foi aí que a história da Colômbia teve uma viragem. É quando os cartéis de droga passaram a dominar todo o panorama. Aliás, em 1989, quando saí de Cali, o cartel de Cali estava em plena vigência e tinha uma presença constante nas ruas. No entanto, eram respeitados, saíam nos jornais ao lado de industriais e políticos, eram quase como donos e senhores da cidade.

No seu romance descreve a classe média-alta, portanto, falamos de uma camada da população que tinha como problemas manter a tradição, o papel tradicional da mulher, uma hierarquização dos papéis sociais. Era isso que marcava a sociedade da classe alta, não havia política presente?
Creio que havia política muito presente, e creio sobretudo que havia uma desigualdade rampante em todas as casas de classe média-alta da Colômbia. Vivia sempre nelas uma mulher num quarto pequenino, como a que aparece no romance, que eram empregadas. Julgo que a Colômbia é um dos países mais desiguais do mundo e, provavelmente, o mais desigual da região. Creio que fui criada numa sociedade em que as diferenças sociais eram imensas e não havia qualquer mobilidade social. Não havia forma de alguém que vivia num bairro comum ou numa aldeia pobre e sem presença no Estado pudesse aceder a um melhor lugar social. Isso marcou a minha visão do mundo na Colômbia.

Crê, então, que essa é a vertente política que se encontra no seu livro? Não só o papel da mulher de classe alta que tem um papel secundário, mas também a desigualdade para com as empregadas que vivem num mundo à parte.
Está isso e está também a violência, aliás, algumas vezes em que dei entrevistas na Europa perguntaram-me porque não narrava a violência colombiana. É uma pergunta que me surpreende porque parece que esse é o lugar do escritor latino-americano. Parece que há que contar a violência, o conflito, mas creio que narro a violência, simplesmente não narro a violência política, o conflito ou a guerra, mas sim a violência que existe nos nossos países em geral e na Colômbia em particular. É uma violência tão forte e sangrenta que ocupa todos os títulos dos jornais e acabamos por nos esquecer de olhar para a violência mais subtil que considero ser a origem de todos os tipos de violência. A violência da desigualdade social também é a origem de outros tipos de violência.

Estamos hoje perante um momento de mudança política na Colômbia e não falo apenas da recente eleição de Gustavo Petro, mas também do acordo de paz que foi feito com a guerrilha das FARC pelo então presidente Juan Manuel Santos e que lhe valeu o Nobel da Paz de 2016. Ainda antes da vitória histórica de Petro e da esquerda, sentia que havia um retorno desta época menos violenta dos anos 70 e 80?
Creio que sim, mas acho que estava tudo sustentado por aparências porque durante a pandemia notou-se ainda mais as diferenças entre as pessoas. Ou seja, os mais ricos tornaram-se mais ricos e os mais pobres tornaram-se mais pobres. As pessoas saíram às ruas para protestar porque tinham fome, quer dizer, no meio de uma pandemia as pessoas já não aguentavam mais a fome. Havia muita gente que passou de comer três vezes ao dia para comer apenas uma.

A situação piorou com a presidência de Iván Duque em relação ao seu antecessor Santos?
Sim, piorou com Duque e, além disso, acho que Santos fez algo muito importante para o processo de paz que foi a mudança de paradigma e de linguagem. Durante o governo de Santos não se falava dos guerrilheiros como os piores seres humanos do planeta. Eram vistos como pessoas que queriam reintegrar-se na sociedade, pousar as armas e começar a viver uma vida democrática. Mas com Duque voltou a estigmatização dos guerrilheiros e também da esquerda. Perante a opinião estrangeira, Duque falava muito do processo de paz, mas na Colômbia entorpecia totalmente o processo de paz para que não tivesse sucesso.

A Colômbia sempre foi uma democracia, mas governada quase sempre pela direita. Mas a direita de Santos e a direita de Duque eram, apesar de tudo, diferentes?
Sem dúvida, a direita de Duque era extrema, enquanto a direita de Santos era liberal. Santos era um verdadeiro democrata que respeitava as opiniões contrárias, tanto que deu um lugar político de diálogo aos guerrilheiros.

Ainda hoje, e sendo até Nobel, Santos é uma figura política respeitada na Colômbia?
Há duas fações na Colômbia, a que o respeita e a que pensa que Santos foi o pior presidente da história do país. Mas esse é o pensamento dessa extrema-direita que existe na Colômbia e que tem governado muitas vezes nos últimos 20 anos.

Vi alguns comentários seus sobre a eleição de Gustavo Petro, que muitas vezes é descrito como um antigo guerrilheiro. Foi um guerrilheiro, mas reconverteu-se em político. Esta eleição representa uma mudança na sociedade colombiana? Foi uma surpresa para si?
Sim, não esperava que Petro ganhasse, honestamente. Já tinha perdido a fé na democracia e a esperança no meu país porque em todas as eleições a direita ganhava com larga margem. O que me surpreendeu foi que estas eleições me permitiram voltar a acreditar na democracia e a acreditar que o povo pode efetivamente eleger na Colômbia. Vemos que a diferença com que ganhou Petro foi muito pequena, mas o comportamento dos eleitores foi bastante estranho. Ou seja, não foram os eleitores tradicionais do centro do país que o elegeram, os colombianos mestiços e brancos, mas sim as comunidades indígenas, as comunidades negras e as regiões. Muitos eleitores foram votar pela primeira vez em anos porque, de facto, querem uma mudança. No entanto, não votei em Petro, mas sim mais na nossa vice-presidente Francia Márquez, a sua parceira de lista.

A vice-presidente é uma colombiana negra. Isto representa mais mudança do que eleger o esquerdista Gustavo Petro?
Claro que sim, porque Petro foi um guerrilheiro nos anos 80, mas já leva muitos anos de política. É um homem que não pertence às elites tradicionais, mas acabou por se converter na sua própria elite. É um homem com muito poder, conseguido com muito esforço, mas acaba por ser parte da nova elite da esquerda moderada. O verdadeiro milagre na Colômbia é a vice-presidente Francia Márquez, uma mulher negra, pobre e filha de mineiros, seguramente a primeira da sua família a chegar à universidade. É filha de mãe solteira que foi empregada doméstica num país conservador e desigual como a Colômbia.

Em Os Abismos, se quisesse encontrar alguém como a vice-presidente, seria a empregada da família ou a outra empregada, na casa emprestada para férias?
Exatamente, digamos que o meu anterior livro, A Cadela, é quase o reverso de Os Abismos porque transcorre o pacífico colombiano em que a protagonista é uma mulher negra que limpa e cuida da casa de férias de uma família branca do interior da Colômbia. Esse romance está narrado desde o lugar social e classe social de onde vem alguém como Francia Márquez, do lugar das pessoas que não têm nada. Vem de uma aldeia que não tem acesso a hospitais, a saúde, a água potável e eu vivi no Pacífico colombiano numa aldeia como essa.

A atual Colômbia, por assim dizer, é menos rica para inspirar um romance ou acha que um dia poderá escrever sobre a atualidade?
Creio que tenho muito caminho por explorar com aquilo que se está a passar, mas creio que demoro algum tempo a processar a realidade. Quando vivia na selva, escrevia livros sobre a cidade e depois de nove anos, fui viver para a cidade, e passei os anos seguintes a escrever sobre a selva. Se calhar, quando tiver 60 anos começo a escrever sobre a situação atual da Colômbia.

Necessita de tempo para perceber aquilo que se está a passar na Colômbia? Para onde vai o país?
Sim, muitas vezes me pedem para escrever colunas de opinião nos jornais, o que poderia ser interessante, mas digo que não porque não sou uma pessoa de opiniões imediatas. Demoro muito a pensar, a ver e a compreender.

Aquilo que me disse sobre Petro e Francia foi algo muito mais emocional do que intelectual?
É a minha relação enquanto eleitora, mas não apoiei Petro logo à partida, levei algum tempo a conhecê-lo. Desta vez, votei porque me deu muita segurança o facto de ter incorporado Francia Márquez na candidatura.

Sei que esperaria que lhe perguntasse algo sobre Gabriel García Marquez, o grande nome da literatura colombiana, mas vou antes falar-lhe do filme da Disney sobre a Colômbia. Encanto agrada-a enquanto colombiana?
É muito estranho porque muitos colombianos não gostaram do filme, mas eu adorei. Adorei porque finalmente vi o meu filho representado num filme, creio que os filmes da Disney passaram muito tempo a ser sobre princesas resgatadas por príncipes. Não havia personagens negros ou mestiços e agora foi possível para o meu filho ver-se nesse filme, ver a sua terra, ver a comida que come num filme da Disney. É algo mesmo extraordinário.

No filme há realismo mágico, algo que é muito colombiano.
Há, exatamente, é um pouco essa Colômbia para "exportação".

Disse que alguns colombianos não gostaram do filme, mas para si a Disney fez um trabalho de tentar ser justa com a sociedade colombiana?
Sim, creio que mostrou a beleza da sociedade colombiana e gostei muito da forma como fizeram o retrato da violência com aqueles homens a cavalo que não sabemos se são guerrilheiros ou paramilitares.

Está otimista com o seu país?
Sim, dentro daquilo que é possível ser otimista. O que espero é que este governo não o faça demasiado mal, ou seja, se este governo respeitar a constituição e levar a cabo os acordos de paz, então dou-me por satisfeita.

Pilar Quintana
D. Quixote
200 páginas
15,50 euros

Pilar Quintna
D. Quixote
128 páginas
13,90 euros

leonidio.ferreira@dn.pt

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