Numa altura em que a crítica italiana, em peso, coloca The Room Next Door, de Pedro Almodóvar, nos píncaros e o põe como o melhor classificado nos quadros das estrelas, chegou à competição Queer, baseado no livro de William S. Burroughs, o guru da geração beat. Trata-se do novo filme de Luca Guadagnino, cineasta italiano aprovado pelo sistema de Hollywood desde Eu Sou o Amor e Chama-me Pelo Teu Nome, pronto para agitar as tintas por aqui: há cenas de sexo a roçar o explícito com o ex-007, Daniel Craig e Drew Starkey, a revelação até agora nas interpretações vistas no festival..E há também sequências mesmo gráficas com Craig a chutar heroína e a dançar nu na floresta da Guatemala com trip de ayahuasca, sendo que é sempre bom lembrar que em 1998, Love Is The Devil (mostrado no Festróia), de John Maybury, o ator já pousava nu em cenas gay como o companheiro de Francis Bacon naquele que viria a ser o papel que lhe daria fama e presença no Festival de Berlim como Shooting Star..Com menos ou mais escândalo, é um Daniel Craig perfeito na composição desta versão do próprio Burroughs durante o seu período no México, uma interpretação feita de detalhes e um trabalho de expressão física de uma intensidade nunca dantes vista. Juntamente com Adrien Brody em The Brutalist e Jude Law em The Order, é muito favorito para o prémio de Melhor Ator, mesmo não esquecendo que ainda estão para chegar Vincent Lindon em Jouer Avec Le Feu e Joaquin Phoenix, em Joker - Loucura a Dois..Era uma vez no México.Queer parte de uma experiência literária autobiográfica de William Burroughs, uma solidão de um americano no México, entre engates esporádicos em hotéis nojentos na capital e noitadas com a comunidade homossexual americana, sempre com muito álcool, tabaco e drogas duras. Quando conhece Gene, um jovem estudante americano, a sua vida parece ganhar um novo propósito. O amor parece querer vir a substituir a errância. Um amor que se torna destrutivo….Direitos reservadosEm Harvest, ontem na competição, filma-se a utopia da experiência rural com amargura..Para Luca Guadagnino, esta história de obsessão tinha de ter um ideal de fantasia cinematográfica. Para tal, todo o filme foi rodado na Cinnecitá, os famosos estúdios romanos e a homenagem ao estilo Powell/ Pressburger é vigorosa. Isso e um contingente de banda-sonora anacrónica, onde nem faltam os Nirvana, mas também um original de Caetano Veloso com Trent Reznor, dos Nine Inch Nails, também o responsável pela insinuante banda-sonora..Claro que se pode embirrar com o berrante carimbo “gay chique”, mas há muito por admirar em todo o desígnio de experiência coreográfica de corpos..E é bem verdade que não chega à excelência do compromisso que David Cronenberg conseguiu com Burroughs quando adaptou O Festim Nu em 1991, pese embora Guadagnino faça da sua vocação de esteta a provocação maior. Nesse sentido, a sua “bad trip” tem uma elegância de esplendor, em parte devido ao talento do diretor de fotografia tailandês Sayombhu Mukdeeprom, o mesmo de Challengers e de Grand Tour, de Miguel Gomes..Kapadia culpa o fascismo para o apocalipse.Fora de competição, 2073, um documentário de ficção-científica, no qual Asif Kapadia nos leva até ao ano de 2073, depois de o planeta ter tido um “evento” catastrófico..Samatha Morton interpreta uma sobrevivente muda e que vive no underground. Antes do sistema não-democrático descobrir o seu paradeiro, há imagens do passado, todas reais, de como os líderes do mundo e os magnatas da nova tecnologia não conseguiram salvar o mundo e não evitaram que a América continuasse a ser governada pelo clã Trump e a democracia acabasse. Uma ideia engenhosa de cruzar documentário de “protesto” com ficção, mas sem o cinema verdadeiro, o grande cinema, já agora..Aliás, esse tema do fim da democracia está metaforizado em muitos filmes, do policial The Order, de Justin Kurzel ao drama arty Harvest, de Athina Rachel Tsangari, a grega do gangue de Yorgos Lanthimos, este último é o título mais frágil da competição até ao momento..E também, à sua maneira, Walter Salles e Brady Corbett, ao trazerem o passado fascista para hoje, estão a antever o mesmo tema. É a tendência da mensagem dos filmes da competição…