"Vem e vê". De olhos bem abertos para o horror da guerra
Dizer que Vem e Vê é um dos melhores filmes de guerra alguma vez feitos não será tão imediato como dizê-lo, por exemplo, de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Porquê? Pela simples razão de que tratando-se a primeira de uma produção soviética, não tem a mesma amplitude mediática, construída ao longo do tempo, que tem um filme americano "de autor".
Apesar disso, a frase de promoção faz-lhe inteira justiça. Basta olhar para qualquer lista - até a do calhamaço 501 Must-See Movies - e lá se encontra esta derradeira e suprema obra do cineasta russo Elem Klimov (1933-2003), agora em reposição no Cinema Ideal, em Lisboa, numa cópia distinguida com o galardão de melhor restauro, no último Festival de Veneza.
Estreado em 1985, após oito anos à espera da aprovação de rodagem por parte das autoridades soviéticas, o filme que no papel traça semelhanças com A Infância de Ivan (1962) - um protagonista adolescente em cenário de guerra - é um olhar bastante mais carregado e violento do que esse do compatriota Andrei Tarkovsky. Legitimando a força do próprio título, Vem e Vê, que é de facto uma expressão bíblica tirada do Apocalipse, Klimov elaborou uma virtuosa e perturbante crónica sobre o horror da Segunda Guerra Mundial que, na visceralidade de cada um dos seus momentos, se traduz numa experiência humana de sentido universal.
O ano é 1943 e Florya (Aleksey Kravchenko), o adolescente que a câmara persegue, será o nosso guia na jornada angustiante. Contra a vontade da mãe, ele junta-se aos partisans soviéticos, durante a ocupação alemã da Bielorrússia, mas acaba por ficar entregue a si mesmo, de arma na mão, até ao reencontro com os membros da resistência. Nesse interregno o filme acontece: no céu repete-se a composição visual dos aviões, na floresta, debaixo de um bombardeamento, respira-se o último oxigénio da idade da inocência, e nas aldeias testemunha-se a monstruosidade perpetrada pelos nazis. No extenso caminho, o protagonista vai mudando fisicamente, o seu rosto - território superlativo do filme - envelhece por via do trauma, numa constante expressão de pavor diante da realidade.
A verdade por detrás das imagens que Klimov dá a ver, em longos planos-sequência que desafiam o caos da guerra, assenta, em primeiro lugar, na escrita autobiográfica de Ales Adamovich. Mas a autenticidade do personagem nasce ainda da fusão com as memórias de infância do cineasta. Ele que disse ter estado "no inferno", quando criança, e que se mostrasse tudo aquilo que sabia, não seria capaz de assistir ao próprio filme... Inferno é, de resto, a palavra que melhor se aplica a uma das cenas mais brutais, quando uma aldeia é incendiada com todos os seus habitantes trancados dentro de celeiros - tal e qual os judeus em câmaras de gás. Sabemos depois que o mesmo aconteceu a 628 aldeias bielorrussas. Um número que fica a ressoar naquele apaziguador final, ao som da Lacrimosa do Requiem de Mozart (nunca soou melhor), enquanto Florya, o rapazinho que cresceu à força, se junta de novo aos partisans, na sequência da vingança simbólica sobre uma imagem de Hitler - a única vez que dá uso à arma.
Vem e Vê é um pesadelo. Porém, Klimov filma-o com o sentido de um poema em fúria, a desejar reescrever a história, concebendo, ora através da banda sonora, ora nos detalhes narrativos (o ninho de aves pisado pelo protagonista, por exemplo), uma eloquência articulada com a dimensão física do medo.
Estabelecer o diálogo com esta obra maior soviética é também relembrar o lugar de Elem Klimov, um dos nomes essenciais do cinema de Moscovo nas décadas de 1960/70, a par com a sua mulher, Larisa Shepitko - esta morreu tragicamente num acidente de viação em 1979, quando os dois estavam a rodar Adeus a Matiora (1983), baseado num romance de Valentin Rasputin. Eram realizadores a transitar do realismo social para perspetivas mais íntimas, de que Ascensão (1977), de Shepitko, é um exemplo admirável. Assim também, Vem e Vê desce às profundezas psíquicas, traumáticas da guerra. E foi o único título que Klimov realizou depois de Adeus a Matiora, em jeito de testamento. Disse ele: "Perdi o interesse em fazer filmes. Tudo o que era possível eu sentir, já tinha feito."
***** Excecional