Mario Vargas Llosa disse que não queria converter-se em estátua e até à reta final da vida, mais de três décadas depois de ter publicado as suas memórias (Como Peixe na Água), manteve a arte e o engenho na escrita e na intervenção pública, fosse no romance ou no ensaio, mas também na política. Por exemplo, em 2017, numa manifestação em Barcelona a que terão acorrido um milhão de pessoas, foi o orador principal contra o secessionismo catalão na ressaca do referendo ilegal pela independência. Ou dois anos depois, com Tempos Duros, um romance crítico da ação da CIA na Guatemala, em 1954. Último da geração do movimento literário boom latino-americano surgido na década de 1960, o Prémio Nobel morreu, aos 89 anos, em Lima, abrindo caminho a que, como nome maior das letras em língua espanhola e uma das mais - senão a mais - ilustres figuras do Peru, esta venha a ser reproduzida em bronze. Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu em 1936 em Arequipa, no sul do Peru, mas cresceu em Cochabamba, na Bolívia, onde o seu avô era cônsul. A mudança foi motivada pelo facto de o seu pai, Ernesto, ter abandonado a mãe, Dora, quando esta estava grávida de cinco meses. Dos seus primeiros anos ficou o gosto insaciável pela leitura. Com nove anos, a família regressa ao Peru, primeiro em Piura, no norte do país, e depois na capital. É em Lima que os pais se reúnem. Uma experiência traumática para o futuro escritor. Não tanto porque a mãe tinha dado o progenitor como morto, mas sobretudo porque este o tratava com violência verbal e física. Adolescente, foi enviado pelo pai para um colégio militar depois de saber que se dedicava à poesia, uma atividade que considerava efeminada. Dos dois anos da “descoberta do inferno”, iria aproveitar para situar o seu primeiro romance, A Cidade e os Cães. Quer esta obra, quer a sua estreia, o livro de contos Os Chefes (que anos mais tarde incorporou outro relato e passou a chamar-se Os Cachorros, os Chefes) foram editados em Barcelona e receberam prémios. Os primeiros de dezenas de louvores distinções, insígnias e doutoramentos honoris causa, do Prémio Príncipe de Astúrias a comendador das artes e letras de França, do título de marquês em Espanha ao Nobel da Literatura. A Academia Sueca distinguiu Vargas Llosa em 2010 pela sua “cartografia das estruturas de poder e as suas imagens nítidas da resistência do indivíduo, da sua revolta e do seu fracasso”. Quando os seus primeiros livros foram publicados, o jovem Mario Vargas Llosa, já casado com a sua tia por afinidade Julia Urquidi - a quem viria homenagear em A Tia Júlia e o Escrevedor -, vivia então na Europa. Primeiro em Madrid, onde prosseguiu os estudos universitários graças a uma bolsa que o premiou como melhor aluno de Literatura, depois em Paris. O peruano, que na segunda metade dos anos 1960 vivia em Londres com a segunda mulher, a prima Patricia, onde dava aulas (tal como o fez depois em Princeton, EUA), foi convidado pela agente literária de Barcelona Carmen Balcells a dedicar-se em exclusivo à escrita, desde que se mudasse para aquela cidade. Foi aí que travou amizade com Gabriel García Márquez, objeto de tese de doutoramento (editado como García Márquez: História de um Deicídio). Com o colombiano, Julio Cortázar ou Carlos Fuentes fez parte de uma geração de escritores da América Latina que renovaram a linguagem literária. A cultura francesa exerceu-lhe grande influência. Na literatura tinha em Gustave Flaubert uma das suas inspirações (o que partilhou com Eça de Queiroz), mas também Victor Hugo. No campo das ideias, Jean-Paul Sartre iluminou-o “contra o estalinismo” em especial quando, ainda em Lima, fez parte do Partido Comunista em reação à ditadura militar. Apoiante de Fidel Castro e de Che Guevara, perdeu qualquer ilusão com as propostas de Marx e Engels depois da invasão soviética da Checoslováquia, em 1968, e sobretudo do processo contra o dissidente cubano Heberto Padilla, em 1971. Mas ficou com o exemplo de comprometimento de Sartre. “Acredito que os escritores têm a obrigação de participar no mundo das ideias, no mundo político”, disse ao El País em 2021, o diário espanhol para o qual escreveu durante 33 anos. Vargas Llosa nunca se furtou ao debate de ideias e à controvérsia, tendo escrito uma dezena de ensaios sobre a sociedade e a literatura, mas também reportagens, peças de teatro e até poesia - é considerado um escritor total. Foi criticado por ter retratado com acutilância a corrupção e a vileza das elites políticas latino-americanas e depois ter feito um desvio de direita ao ponto de se ter candidatado à presidência do Peru em 1990, com o apoio dos oligarcas e um programa que acabou por ser adotado pelo vencedor, Alberto Fujimori (e ao qual este adicionou as suas medidas repressivas e autoritárias). Em 2021, Vargas Llosa foi criticado por ter apoiado a candidatura presidencial da filha de Fujimori, Keiko, depois de esta se ter comprometido em respeitar as “garantias democráticas” que o autor de A Guerra do Fim do Mundo (a sua obra preferida) havia pedido. Vargas Llosa foi acima de tudo um opositor do autoritarismo e um advogado das liberdades. Criticou autores como o alemão Günter Grass por apoiarem regimes revolucionários na América Latina com os quais não se identificariam nos seus próprios países, ou os intelectuais mexicanos que embarcaram no que chamou de “ditadura perfeita” do Partido Revolucionário Institucional, o movimento que teve as chaves do poder na maior parte do século passado. “É necessário defender a democracia e as ideias liberais neste momento mais do que nunca”, afirmou na referida entrevista ao El País..Ana Paula Laborinho, Manuela Júdice e Luís Filipe Castro Mendes escolhem livro favorito de Vargas Llosa