'Uma Vida no Teatro' - O princípio do fim da vida em palco
Num camarim, dois atores - um jovem e outro mais velho - “despem” as personagens que interpretaram minutos antes. Falam um com o outro sobre a peça que acabaram de fazer e da vida, a pouca que lhes resta para lá dos palcos. É assim que o público, quando entra na sala vermelha do teatro Aberto, tem o primeiro contacto com os atores - Alfredo Brito e Vítor Silva Costa - e com o texto de David Mamet. A escolha da encenadora, a também atriz Cleia Almeida, foi a de dar ao público a visão dos bastidores das várias peças que os mesmo atores vão fazendo ao longo do tempo. E que é marcada por uma curiosidade cénica: a cada entrada em cena os atores calçam umas botas com a sola a pingar tinta azul. “Queria uma coisa poética e o cenógrafo, David Serrão, propôs-me que os atores deixassem pegadas no palco, que se vão sobrepondo umas às outras. Todos os dias há pegadas e assim é óbvio que eles já estiveram ali e o tempo passou”. Aos 41 anos, Cleia Almeida estreia-se na encenação com este Uma Vida no Teatro. Peça escrita pelo norte-americano David Mamet (1947) e uma das que lhe deu notoriedade, quando subiu à cena pela primeira vez em Nova Iorque, em 1977.
A peça centra-se na vivência entre os dois atores numa relação que mistura a camaradagem e a competição, dentro e fora de cena. “Dois olhares diferentes sobre o teatro e a vida, sobre o que se ganha e o que se perde quando se vive tanto tempo na pele de tantas personagens”, como refere a folha de sala da peça.
Cleia Almeida conta como surgiu a ideia de encenar esta peça: “vi-a quando era mais nova em Londres e notei que as pessoas riam-se muito com o texto. Mas fiquei com uma sensação de tristeza muito grande pela personagem do ator mais velho, lembro-me que nessa altura fiquei muito revoltada, tinha 20 anos (risos). E fiquei a pensar se não existiriam outras versões da peça, mas percebi que, tendencialmente, fazem-no de forma cómica. Sim, há algumas brincadeiras na peça, mas achei que isso estava errado e quis fazer de forma diferente. Não é melhor nem pior, é diferente. Propus a minha versão ao João Lourenço (diretor artístico do Teatro Aberto) e ele achou bem.”
A estreia a encenar
E esta estreia na encenação tem sido “uma descoberta” para a atriz, explica. “Pensava que era diferente. Gostei muito de o fazer, mas exige muito de nós. E só agora, passadas várias semanas depois da estreia, é que estou a olhar as coisas de outra maneira, porque até à estreia há muitas decisões que têm de ser tomadas em curto espaço de tempo e é uma grande responsabilidade. É quase mesmo como ter um bebé”. Com a peça em cena desde o final de março, Cleia regressa ao teatro “normalmente às quartas-feiras”, e no final conversa com os atores sobre como sentem a reação do público. “Apesar de não ir todos os dias, dizem-me que temos tido muito público e sei que tem corrido muito bem”, acrescenta Cleia. Aliás, não são raras as vezes em que o público espera pelos atores no final para conversarem sobre a peça, “sinto que há uma necessidade extrema de falar sobre a peça, ou é porque odiaram ou porque adoraram”.
A consciência da idade
Para a encenadora há uma mensagem clara que o texto de David Mamet passa e com isso gostava que “as pessoas pensassem e olhassem para a experiência da idade como uma coisa boa e que tratassem a geração mais velha com os valores que eles acham que são certos”. Exemplifica voltando ao texto e como a personagem do ator mais velho não conseguiu, ao longo da vida, ter uma base em que se sentisse bem a regressar à sua casa depois do trabalho, depois das peças. “Sente-se completamente perdido e triste e deprimido quando não tem o teatro”. E isso passa-se na vida real com alguns atores, diz. “Há pessoas que têm uma ambição tão grande que não lhes permite pensar que a vida é mesmo muito curta e que para lá do trabalho e de querermos ser melhores atores a cada dia, há a família e os filhos que, tendencialmente ficam num grau diferente de importância. Acho que, quem faz isso, arrepende-se quando chega ao final da vida”.
Para além desse “ocaso” dos palco, o texto sublinha a diferença de gerações, personificadas nos dois atores. Mais de que um conflito geracional, é sim “um conflito de personalidades entre os dois atores. Podiam ser dois atores de 30 anos a terem o mesmo conflito”, explica a encenadora. “A questão é que o ator mais velho insiste em passar ao ator mais jovem aquilo que aprendeu, mas o mais jovem quer seguir o seu caminho e está farto de ouvir os seus conselhos”.
Uma peça sobre amizade, conflitos, as prioridades da vida, o amor à profissão e o princípio do fim da vida - para ver em palco até 26 de maio.
Uma Vida no Teatro, de David Mamet
Teatro Aberto
Em cena até 26 de maio
Quarta e quinta: 19h
Sexta e sábado: 21h30
Domingo: 16h