Os Painéis de São Vicente vão ter uma nova vida a partir de 2020

Painéis de São Vicente têm pela frente três anos de restauro. Uma intervenção para quase 500 mil euros, parte dos quais em parceria com a Fundação Millenium BCP.
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Quem olha para os Painéis de São Vicente, expostos em lugar de destaque na sala de pintura portuguesa do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, não diria que precisam de restauro. No entanto, passam já cem anos desde a última intervenção, a cargo de Luciano Freire, explica ao DN Joaquim Oliveira Caetano, especialista em pintura antiga, e também diretor da instituição, esta terça-feira, dia em que foi assinado um protocolo com a Fundação Millenium BCP, que permitirá avançar com este projeto.

As 58 figuras aqui retratadas em torno da dupla figuração de São Vicente mostram, numa análise mais próxima, os sinais da passagem do tempo e da degradação do restauro com óleo industrial que usou Luciano Freire (1854-1934), o pintor, professor de desenho e investigador na área da conservação e restauro em 1909/1910.

Essas manchas são evidentes nas imagens que vão passando no ecrã tátil que se pode ver na sala dos Painéis de São Vicente - com a sua história, cronologia, significado e exames. "Hoje podemos ir onde Luciano Freire teve, e bem, prudência em avançar", diz Joaquim Oliveira Caetano. "Chegar mais perto do que queria Nuno Gonçalves", completa.

A radiografia diz-nos que muitos espaços brancos foram "preenchidos" por Luciano Freire, os infra-vermelhos mostram que o desenho primitivo incluía um soldado com armadura, um homem de turbante e outros detalhes que uma vez descobertos acrescentaram conhecimento aos Painéis de São Vicente - um conjunto composto por quatro peças mais pequenas e duas maiores (ao centro) que José de Figueiredo, académico e primeiro diretor deste museu inaugurado em 1884 por D. Luís, atribuiu ao pintor Nuno Gonçalves, pintor régio no tempo de D. Afonso V.

O acordo agora assinado com o Millenium BCP é para três anos, num valor de 225 mil euros, metade do que Joaquim Oliveira Caetano acredita que será necessário para realizar o restauro e para o qual continuará à procura de parceiros. Garante que têm vários orçamentos na cabeça e vários cenários. Uma hipótese é o investimento de 100 mil euros numa câmara de reflectografia, dotando o MNAA de equipamentos que serão estruturantes e "fortalecem o museu". Noutro cenário, poupam este valor e contam com a colaboração dos laboratórios José de Figueiredo, do Hércules, em Évora, ou do Instituto Superior Técnico.

"Não me comprometi com prazos e é de propósito. Não deixaremos que nada seja apressado para cumprir calendários comerciais ou políticos", garante Joaquim Oliveira Caetano após a apresentação.

Quatro conservadores - dois do museu e dois contratados externamente de propósito - estarão a cargo do trabalho em colaboração com consultores externos com quem o museu já trabalhou no passado. Até março, a equipa empreende um trabalho de diagnóstico da pintura, "um mapa pormenorizado".

A intervenção será realizada no Museu Nacional de Arte Antiga, mas esses detalhes ainda estão a ser estudados, explica Joaquim Oliveira Caetano. "Gostava que fosse in loco, mas ainda estamos a sopesar essas questões. Se for necessário retirar parte dos painéis, fá-lo-ão de forma "faseada", "dois a dois, depois um maior, depois o outro e finalmente os últimos dois", explica. No seu lugar serão usadas réplicas. "Esta não é uma obra qualquer, não é apenas uma grande obra artística , mas um símbolo do país", diz.

Além da equipa de quatro conservadores que se vão dedicar ao restauro dos seis painéis, uma equipa de consultores virá a Portugal duas vezes por ano e outra acompanhará os trabalhos mais de perto, a cada dois meses.

Entre as tarefas que serão levadas a cabo está o estudo de como deixar à vista toda a pintura que hoje fica até 8 centímetros tapada pela moldura dourada da peça, resultante dos estudos de Almada Negreiros para a exposição de 1940, momento a partir do qual os painéis passaram a ser disposto em seis e não em dois grupos de três, como acontecia até essa altura. "Saiu em Diário da República", conta Joaquim Oliveira Caetano à diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, e ministra da Cultura, Graça Fonseca. "Vamos fazê-lo se arranjarmos uma solução técnica que não altere a pressão sobre a madeira da pintura."

No final, os Painéis de São Vicente, oriundos do Paço Patriarcal de São Vicente de Fora, terão uma nova vida. "Vamos ficar a conhecer mais do pintor e de como pintava", afirma Joaquim Oliveira Caetano, ainda assim cauteloso. "Mas o restauro não vai responder ao quem é quem na pintura, para o qual temos de aprender a viver com o que se consegue e o que não se consegue saber".

Desde que os painéis foram "descobertos" no Paço de São Vicente de Fora em 1884 até à identificação do autor, Nuno Gonçalves, e a data em que terá sido pintado - em meados do século XV - mantêm-se as dúvidas quanto à identidade das quase seis dezenas de personagens que fazem parte do "maior retrato coletivo da pintura ocidental", como lhe chama Joaquim Oliveira Caetano. Não é sequer consensual que o homem do chapeirão seja o infante D. Henrique, apesar das semelhanças com outra pintura em que é representado, existindo teses de que pode tratar-se do seu irmão, D. Pedro.

O que se pode dizer sem risco é que "era já politicamente importante", diz o diretor do MNAA. "Porque algumas figuras não foram pintadas para entrarem outras", nota. É aceite que se trata de uma representação da corte e da sociedade portuguesa da época no momento no momento em que veneram o patrono da expansão militar no Médio Oriente.

Pintado a óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, cada um dos painéis tem dois metros (e uns centímetros mais de altura). Acredita-se que originalmente as pinturas estavam integradas no retábulo de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa.

José de Figueiredo atribuiu a Nuno Gonçalves a autoria do quadro quando localizou um monograma do pintor coincidente com outros encontrados em obras e documentos da época na bota da figura ajoelhada no Painel do Infante (que se acredita ser D. Duarte).

Coleção de artista florentino também vai ser restaurada

Ao mesmo tempo que se realiza o restauro dos Painéis de São Vicente, medalhões e esculturas da oficina Della Robbia, italiana, também serão alvo de intervenção. Estas peças fazem parte de uma coleção de escultura de cerâmica vidrada policromada. "O que o Della Robbia inventou foi a maneira de expor barro na rua", sintetiza Anísio Franco, conservador do museu e vice-diretor.

Neste caso, os especialistas portugueses vão receber a colaboração de restauradores italianos que já levaram a cabo um trabalho semelhante numa das peças do MNAA que está agora em exposição em Florença, e nesse âmbito foi restaurada.

"Com este projeto vamos dotar os nossos restauradores de competências que serão úteis não só no Museu Arte Antiga, mas também por exemplo no Museu Nacional do Azulejo onde também estão algumas peças Della Robbia.

A oficina deste escultor, muito famosa em Itália, no século XV, conhecida pelas cores que conseguia dar às suas peças. Ganhou enorme projeção quando o arquiteto Filippo Brunelleschi começa a introduzir as suas peças nos seus edifícios.

Em Portugal, além de poderem ser vistas no salão nobre do Museu Nacional de Arte Antiga, oriundas na maioria do convento da Madredeus, e no Museu do Azulejo, também estão no Mosteiro dos Jerónimos, para o qual foram encomendadas várias esculturas de santos.

Na assinatura do protocolo entre Museu de Arte Antiga e Fundação Millenium BCP, agora liderada pelo embaixador António Monteiro, esteve a ministra da Cultura. Graça Fonseca sublinhou "o sentido virtuoso" destas parcerias "público-privadas", patente também na restaurada sala de D. João IV, e alvo de reabertura oficial no sábado, em que, mais uma vez, o património cultural contou com o apoio mecenático da Fundação Millenium BCP, a mesma que já tinha participado na reabilitação da capela de D. Maria, encomendada ao arquiteto Miguel Ventura.

Graça Fonseca lembrou que em breve abrem concursos para a direção de vários museus nacionais, entre eles o Museu de Arte Antiga, dirigido interinamente por Joaquim Oliveira Caetano e Anísio Franco (vice-diretor). Sobre o facto de o museu necessitar recrutar conservadores e vigilantes, evitando o encerramento de salas, Graça Fonseca remeteu para a discussão do Orçamento do Estado.

[Este artigo foi publicado originalmente no dia 12 de novembro de 2019]

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