Uma nova história do Sporting que não é só para adeptos
Os antecedentes do futebol moderno e o contexto desportivo
Foi justamente no período de viragem de 1906 seria fundado o Sporting Clube de Portugal, impulsionado sobretudo pelo pensamento, pela conceção do desporto e pela ação prática de José Alvalade.
Neste contexto da formação e desenvolvimento de grupos ou associações desportivas, vale a pena avaliar a importância do corte decisivo operado neste momento de viragem. Sem exaustão de exemplos, é de assinalar, antes de mais, que a prática de algumas das primeiras atividades desportivas, como a equitação ou a esgrima, eminentemente do âmbito da aristocracia militar, em que se competia ao ritmo da atribuição de troféus, muitas vezes promovidos pelos próprios competidores, não se congregava em torno de clubes ou associações. Mas as associações, quando organizadas em torno destas modalidades de elite, não deixaram de refletir a origem social e profissional em que se inseriam; não se tratava apenas de uma elite titulada, propriamente aristocrática, mas também de uma elite dos negócios, a que se juntava uma elite corporativa das profissões militares e uma elite dos estratos superiores da classe média.
O Sporting Clube de Cascais, fundado em 1879, é o exemplo típico da ocupação desportiva e recreativa da Corte e dos seus áulicos, num ambiente seleto e em espaço socialmente restringido às elites tituladas por brasão ou chanceladas por grandes fortunas. As suas instalações situavam‑se nos terrenos régios conhecidos por Parada e pertencentes à Cidadela, estância de verão da realeza e ícone da alta sociedade e do seu estilo de vida faustoso e ocioso, distinto e elegante.
Num patamar abaixo da escala social, surgem as corporações desportivas e recreativas mais ligadas a setores profissionais próximos dessas elites mas ainda centradas na exibição mundana das classes superiores. São os casos da Real Associação Naval, desde 1856, e do Clube dos Aspirantes da Marinha, desde 1888, ambos ligados à Armada e que monopolizavam atividades como o remo, a vela, a natação. Outro caso é o do Real Ginásio Clube Português, fundado em 1875, primeiro ligado à Coroa e à instrução física dos príncipes, depois às escolas militares que desenvolviam exercícios gímnicos e, por último, à natação, à luta greco‑romana e ao boxe.
Acresce, em 1893, o Grupo Pátria, formado a partir da carreira de tiro de Pedrouços, e posteriormente várias associações de «tiro de guerra», bem como, em 1897, o Centro Nacional de Esgrima, ligado ao exército. Estas verdadeiras corporações inseriam‑se nos espaços mundanos das elites, organizando competições a que o próprio rei e outras dignidades régias presidiam, presenteando‑as com os troféus em disputa. O ciclismo, com o Club Velocipedista em Lisboa, desde 1891, e o Velo Club do Porto, desde 1893, reuniam inicialmente o ócio de barões da corte e dos negócios, se bem que a atividade excursionista e a popularização da bicicleta, contando inclusivamente, a dada altura, com a participação de elementos femininos, tenham começado a abrir‑se à «participação de elementos de grupos sociais urbanos menos favorecidos» e chegado à prática nos clubes desportivos mais ecléticos na segunda década do século xx.
Ao mesmo tempo, surgiram pequenas competições populares em circuitos urbanos ao ar livre, muitas vezes promovidas por jornais desportivos que procuravam retirar efeitos mediáticos do espetáculo público, como foi o caso do jornal O Século, segundo corrobora José Pontes que, além de médico e cultor convicto do olimpismo, foi jornalista desportivo. Do mesmo modo, os sports atléticos, antecedentes do atletismo, começavam a federar‑se e a organizar competições entre clubes, afastando‑se do meio estritamente interno e fechado de cada associação ou dos certames a despique com outro rival, prática até então prevalecente.
Os primeiros grupos de futebol: feitos e desfeitos
Além da passagem a escrito das «leis do jogo», da institucionalização dos clubes como entidades jurídicas e do aparecimento de estruturas federativas em que o futebol foi pioneiro, outro aspeto que marca a passagem da pré‑história à história do futebol é a passagem do «campo da bola» ao «estádio». Desde os primeiros grupos ou clubes de carácter informal, sem o reconhecimento jurídico por alvará a que eram obrigadas as associações desportivas, nem regulamentos internos que norteassem a sua existência coletiva, a evolução foi grande.
Ficava para trás o tempo dos grupos que funcionavam ao sabor da ocasião e do improviso, em núcleos de amigos e, sobretudo, em círculos aristocráticos ou de gentes endinheiradas, ao ritmo do despique
ocasional. O processo de «autonomia do campo desportivo, com um quadro temporal próprio, criando regras universalmente aceites onde, teoricamente, todos participam em igualdade de condições», aliado à «existência de entidades reguladoras», «corresponde também a um tempo de modernidade em que o desporto incorpora uma dinâmica social característica da sociedade industrial competitiva, organizada racionalmente». Neste processo, o futebol teve um efeito acelerador do que veio a passar‑se com outras modalidades, mercê do impacto súbito e do reconhecimento público que rapidamente adquiriu. Daí a relevância da análise a essa modalidade que é hoje o desporto‑rei.
Os antecedentes do futebol moderno e o contexto desportivo
Numa série de quatro artigos, publicados em 1913, que o dirigente associativo Raúl Nunes consagrou ao «Futebol: a sua evolução em Portugal»32, o autor discerniu com razoável intuição, mesmo sem uma perspetiva crítica distanciada, a fronteira que nesse tempo se traçava: «Sem organização de espécie alguma, começou jogando‑se football há seguramente vinte anos.» Recuava, pois, à década de 90, compendiando a breves traços o percurso da modalidade, desde o tempo em que um círculo de «meia dúzia de entusiastas portugueses», juntamente «com alguns ingleses», «formaram os primeiros grupos» para disputa ao desafio, seguido de desforra.
Foi o tempo em que surgiu o Clube Lisbonense, reunindo jovens da elite de então, tais como Guilherme, Eduardo e Frederico Pinto Basto - que, enquanto estudantes em Inglaterra, experimentaram a novidade do futebol e, no regresso, trouxeram a bola e as botas do novo jogo -, Carlos Paiva Raposo, Herculano de Moura, Mariano Cardoso, Afonso e Carlos Vilar, Plantier e mais uns quantos amigos do mesmo círculo social.
Disputavam desafios com o Carcavelos Club, formado pelos empregados da Eastern Telegraph Company, a empresa inglesa de exploração do cabo submarino que, desde 1870, ligava o porto de Falmouth, na costa sul de Inglaterra, à ilha de Malta, em pleno Mediterrâneo. A Companhia estava sedeada na Quinta Nova, nas proximidades da costa da linha de Cascais, e a sua administração criou um clube privado, com recintos adequados a algumas modalidades desportivas de tradição tipicamente inglesa, e em ambiente fechado, disputando jogos em que participavam alguns administradores e pessoal de chefia. Começaram por desafiar um grupo de atletas do Real Ginásio Clube Português, que esporadicamente vestiam equipamento de futebol para terçar armas em campo aberto, e foram estes que, em 1891, no Campo Pequeno, pela primeira vez jogaram em público.
Até ao início do século xx, foram sendo criados, com maior ou menor frequência, agrupamentos ou clubes que disputavam desafios entre si, com particular relevo para os despiques entre teams ingleses e grupos portugueses. Do mesmo modo que trocavam entre si de jogadores, também facilmente criavam dissidências, operavam fusões ou simplesmente se extinguiam. Raúl Nunes fornece‑nos copiosa informação que afirmou ter resultado de «buscas intermináveis», que confirmámos, a par e passo, terem sido obtidas nas páginas do Diário Ilustrado, o primeiro jornal generalista a incluir uma secção de «Sport». Em resumo, pode dizer‑se que o percurso que vai do Club Lisbonense, fundado em 1892, à formação, em 1902, do Club Internacional de Foot‑ball (mais conhecido por C.I.F., ainda hoje existente e mantendo a grafia antiga, mas cujos estatutos apenas foram aprovados em 1911), com várias tentativas de reorganizações e junções de permeio, bem como a frequente entrada e saída de jogadores, representa com toda a propriedade estes primeiros tempos do «jogo». Pode dizer‑se que esta foi a era dos Pinto Basto, irmãos, filhos e primos de uma família que dominou o sport na capital. De forma concisa, o mesmo Raúl Nunes fixou as características deste tempo do futebol: «Indisciplina, falta de regras e o abandono do jogo por alguns players dos mais antigos»38. A amálgama de jogadores e das suas equipas era então uma prática comum, a mesma que levou, em 1902, à formação do Sport Club de Belas, a mais remota origem do Sporting Clube de Portugal, que será objeto de análise mais adiante. O mesmo autor, num dos textos da sua série de artigos, viu bem o que distinguiu «a nova fase que o futebol tomou» por volta de 1906 - «a organização de sociedades, ligas, uniões [...] que por uma especial constituição regulamentar terá como base ou princípio o estabelecer a melhor harmonia e a melhor ordem, com regras seguras e inalteráveis, entre os seus agremiados», ou seja, o que permitiu o «definitivo enraizamento do futebol no nosso país» ou, de outro modo, a saída da sua pré‑história.
O caso de um dinossauro que, se o foi, extinguiu-se
De entre os primeiros clubes, atentas as condições de enquadramento no seu lugar e tempo histórico, um caso suscita reflexão: o de um clube cuja prematura e fugaz existência coincidiu, pelo acaso do nome, com outro posterior, em nada semelhante e sem raízes nem ligações comuns. Falamos do Foot‑ball Club do Porto, cuja primeira notícia da sua existência surgiu na imprensa, a 28 de setembro de 1893, no lisboeta Diário Ilustrado, sendo essa data hoje considerada a da fundação do atual Futebol Clube do Porto.
Não se trata da data de um qualquer documento ou evento, anterior ou posterior, relativo à fundação da recém‑formada associação desportiva, mas de uma notícia de imprensa... O mais provável, aliás, é que o clube tivesse sido criado uns dias antes de 28 de setembro, dada a referência inicial à sua fundação na própria notícia.