Uma fábula chilena sobre as famílias, o amor e o sexo

Pablo Larraín, o mais internacional dos cineastas chilenos, assina um drama desencadeado por uma adoção que corre mal: "Ema" é mais uma prova exemplar do arrojo do seu olhar, da sua ousadia e invenção.
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Face à estreia de Ema, de Pablo Larraín, filme que esteve na secção competitiva de Veneza/2019, apetece lembrar uma óbvia dicotomia: por um lado, é verdade que os cineastas mais interessantes se impõem quase sempre através de um universo muito próprio, combinando temas específicos com formas narrativas mais ou menos ousadas; por outro lado, não é menos verdade que o inventário de tais temas e formas se revela sempre insuficiente, já que eles sabem surpreender-nos, de alguma maneira desafiando as suas próprias regras.

Nascido em Santiago do Chile, em 1976, Larraín é um desses cineastas. Assim, o essencial da sua obra - com destaque para a trilogia formada por Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e Não (2012) - envolve dramáticos retratos do seu país durante a ditadura de Augusto Pinochet. Ao mesmo tempo, ele é autor do prodigioso Jackie (2016), uma viagem pela intimidade de Jacqueline Kennedy, com Natalie Portman naquela que é, a meu ver, a melhor composição da sua carreira.

Também aqui se trata de seguir uma personagem feminina, embora com nuances que, por assim dizer, a excluem de qualquer contexto histórico. Assim, Ema (interpretada pela magnífica Mariana Di Girolamo) é uma jovem de Valparaíso que vive a dura ressaca de uma vida conjugal cujas certezas se baralharam: ela e o marido (Gael García Bernal, "habitué" do cinema de Larraín) tentaram adotar uma criança, o processo correu mal e perderam a sua tutela...

Nada disso faz de Ema uma crónica "sociológica" sobre os mecanismos de funcionamento de uma família moderna, neste caso na cidade de Valparaíso. Em boa verdade, este é um filme em que tudo vacila, da conceção dos laços familiares à própria inserção social do casal, das cumplicidades profissionais às convulsões da sexualidade. E como Ema e o marido estão ligados ao universo artístico da dança (também ele marcado pela tensão entre "clássicos" e "modernos"), dir-se-ia que tudo acontece como um bailado cujas marcações estão alteradas por insondáveis desejos - o destino de cada um envolve, como limite, a estranheza do seu próprio desejo.

Há qualquer coisa de arfante no desenvolvimento narrativo de Ema, como se assistíssemos aos efeitos de um rolo compressor de dramas quotidianos e tragédias suspensas. Larraín intensifica isso mesmo através de uma sofisticada estrutura narrativa em que cenas mais longas de diálogos, sempre vibrantes, por vezes agressivos, alternam com breves momentos (em alguns casos, apenas uma enigmática troca de olhares entre duas personagens) que parecem conter incomensuráveis durações e insondáveis mistérios afetivos.

A imagem inicial do filme - uma rua de Valparaíso, à noite, com as três cores de um semáforo a serem devoradas por chamas - possui a energia invulgar de um ícone que, por assim dizer, nos avisa para o que aí vem. O fogo, ora real, ora simbólico, que vai marcar a trajetória de Ema resume a perturbação da sua trajetória: ela pode destruir os outros, nessa medida correndo o risco de perecer no mesmo fogo. Neste filme, talvez já não haja verdadeiras famílias, mas tudo é familiar.

* * * * Muito bom

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