De Jim Jarmusch a Ryûsuke Hamaguchi, dos Estados Unidos ao Japão, são muitos os realizadores que reclamam a influência de John Cassavetes, considerado a figura paterna do cinema independente norte-americano. O ciclo que a Leopardo Filmes lança na próxima quinta-feira chama-lhe mesmo "O Verdadeiro Rebelde" e, através de uma mão-cheia de obras restauradas, dá-nos conta da vertiginosa estranheza do seu cinema - um cinema devoto do ator, sempre com um procedimento avesso ao sistema de Hollywood..Depois de uma revisitação desta filmografia nos anos 1990, proporcionada pela Atalanta Filmes, uma onda de frescura cinéfila está prestes a passar pelas salas do Nimas (Lisboa), Teatro Campo Alegre e cinema Trindade (Porto), arrancando com Sombras e terminando em Noite de Estreia..Sombras, de 1959, é uma pedrada no charco. Um filme que, na altura, em tudo se distinguiu da lógica de produção e dos preceitos narrativos do cinema clássico norte-americano, no interior do qual o próprio Cassavetes cresceu enquanto ator (embora a sua formação inicial, na Academy of Dramatic Arts, se possa considerar a semente de uma outra postura em relação ao "ator de Hollywood", contrária ao Método do Actors Studio). E, claro, é sobretudo no aspeto da representação que se descobre o núcleo e novidade da proposta do realizador - Sombras nasce, inclusive, de um workshop para atores que ele criara com o amigo Burton Lane, aí ensaiando as relações inter-raciais que constroem o quadro de experiência da juventude nova-iorquina retratada no filme. Quase tudo o que viria a constituir a vibração do seu cinema está nesta primeira obra, desde as corridas das personagens às "brincadeiras" expressivas cujo movimento a câmara tenta acompanhar, dir-se-ia, com o mesmo estilo de improvisação que se escuta na banda sonora jazzística. .O segundo filme programado neste ciclo é Rostos (1968), precisamente, o título que dá continuidade àquilo que Cassavetes tinha começado com Shadows, embora pelo meio haja dois filmes - Too Late Blues (1961) e A Child is Waiting (1963) - realizados em contextos de produção de estúdio, que não lhe permitiram a mesma liberdade criativa. Seja como for, vale a pena destacar A Child is Waiting, um dos mais belos momentos da última fase da carreira de Judy Garland, no papel de uma professora de música numa instituição para crianças com distúrbios do foro intelectual ou emocional. De maneira nenhuma uma obra que mereça ser votada ao esquecimento, apesar de Cassavetes a ter renegado....Mas voltando a Rostos/Faces, filme que, tal como Shadows, segue o trajeto de relações das suas personagens (no caso, um casamento em desintegração), é a partir dele que o realizador vai estabelecer a sua "família" de atores, começando pela mulher, a icónica Gena Rowlands, e Seymour Cassel, depois agregando, em Maridos (1970), Ben Gazzara e Peter Falk..Outro dos títulos recuperados agora em sala é A Morte de um Apostador Chinês (1976), com Gazzara na pele de Cosmo Vitelli, o dono de um clube de strip que, para pagar uma dívida, se vê obrigado a matar um velho apostador chinês. Estamos no território do film noir, mas mesmo assim Cassavetes não sucumbe aos códigos desse género cinematográfico, fazendo depender de Gazzara (como noutros filmes fez depender de Rowlands) a performance que permite aceder aos canais de uma verdade humana irrepetível. Não se trata de um jogo de carisma, mas da capacidade de gerar uma espécie de revelação..Digamos que, no cinema de John Cassavetes, os atores atingem esse ponto de revelação pelo processo que é o próprio filme. Tem tudo que ver com a ideia da representação enquanto tema intrínseco e método para alcançar a natureza humana, nas suas camadas mais profundas. Qual método? Essencialmente, o realizador deixava aos atores o trabalho de descobrirem por si o seu papel, sem que estejamos a falar de improvisação pura e dura: o argumento escrito funcionava aqui como a base para interpretações "espontâneas", isto é, reescritas no ato da rodagem, como se de um ensaio se tratasse. Daí a sensação de que os seus filmes são um faroeste de vozes, uma confusão de rostos, uma desordem natural que a câmara agarra com a destreza possível, obcecada com a dinâmica dos corpos e a coreografia das palavras..Uma Mulher Sob Influência (1974) e Noite de Estreia (1977), as duas restantes obras em reposição, não podiam ser mais exemplares desse experimentalismo genial. Em ambas, Rowlands está na dianteira, a aguentar as dores da sua performance livre - sim, porque a liberdade do ator correspondia, de certa maneira, a uma procura sofrida e desamparada, até a personagem lhe fazer sentido. É, afinal, isso mesmo que se vê em Noite de Estreia, com uma atriz (Rowlands) em crise, incapaz de assumir o seu papel numa peça de teatro, entrando numa noite escura muito sua, até ao momento da verdade que será a dita noite de estreia. Estamos perante uma monumental interpretação desta leoa do grande ecrã (entre whisky e cigarros), que ainda antes impressionou no referido Uma Mulher Sob Influência (valeu-lhe uma nomeação para Óscar), na pele de uma dona de casa com uma perturbação mental que, em certas ocasiões, tende a escalar... Também aqui é fascinante perceber como o método de Cassavetes se esconde nas palavras das personagens. Por exemplo, quando ela diz ao marido (Peter Falk) "posso ser qualquer coisa, é só dizeres", e ele lhe pede, noutra cena qualquer, "sê tu mesma"....Para além destes cinco títulos que regressam às salas, o cinema Medeia Nimas terá ainda sessões especiais de Maridos (1970), Minnie and Moskowitz - Tempo de Amar (1971), Gloria (1980) e Love Streams - Amantes (1984), este último, e Husbands, com o próprio realizador do outro lado da câmara. No total, quase uma dezena de filmes em que deparamos com atores/personagens perdidas, desconfortáveis na sua pele. Justamente o efeito que Cassavetes procurava produzir no espectador: sacudi-lo, acordá-lo do torpor das "verdades manufaturadas e rápidas" do cinema mainstream..dnot@dn.pt