Um romance sobre a “portuguesinha de Nápoles” e “o homem mais ilustrado” que Thomas Jefferson conheceu
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Um romance sobre a “portuguesinha de Nápoles” e “o homem mais ilustrado” que Thomas Jefferson conheceu

Publicado primeiro em inglês nos EUA, onde Julieta Almeida Rodrigues se doutorou na Columbia, este 'Leonor e José - Paixão, Tragédia e Revolução na Idade das Luzes' tem agora edição portuguesa.
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Como lhe surgiu esta ideia de juntar num romance José Correia da Serra e Leonor Fonseca Pimentel?

As ideias são, para mim, como cerejas dentro de uma tigela, na primavera! Ou seja, apetecíveis, já que eu tenho uma curiosidade insaciável. Por esta razão, ando sempre a aprofundar diversos temas, isto ou aquilo. Ao escrever um livro sobre o século XVIII, o século mais fascinante da história da humanidade devido aos acontecimentos gerados pela Revolução Francesa, eu tinha duas vertentes: por um lado, debruçar-me sobre países que eu conhecia relativamente bem, como Itália e os Estados Unidos; por outro, escolher figuras portuguesas do Iluminismo que se tivessem destacado nesses países. Para além disso, as famílias de José Correia da Serra e Eleonora Fonseca Pimentel viram-se obrigadas a deixar Roma, onde viviam, em retaliação dos Estados Papais pela expulsão dos Jesuítas de Portugal levada a cabo pelo Marquês de Pombal. Ambas as famílias tinham-se estabelecido no Reino de Nápoles. Havia à partida, portanto, um fio condutor.

José, nascido em Serpa, é claramente português, apesar de uma vida passada no estrangeiro. Até que ponto Leonor, ou Eleonora, nascida em Roma, pode ser considerada portuguesa?

Aqui está uma boa pergunta! De facto, Leonor Fonseca Pimentel nasceu em Roma, como refere. Nasceu na Via Di Ripetta, n.º 22, no centro histórico de Roma e onde ainda hoje se encontra uma lápide comemorativa da sua vida. Depois cresceu, viveu e acabou por ser levada ao cadafalso no Reino de Nápoles com 47 anos de idade. Figura no Panteão dos Mártires da Liberdade, ao lado dos outros revolucionários italianos de 1799. Mas Leonor nasceu em Itália de pais portugueses. Falou a vida inteira português em casa (como aliás, grande número de portugueses no estrangeiro). Durante toda a vida manteve correspondência com a elite intelectual portuguesa (Frei Manuel do Cenáculo e o Duque de Lafões, por exemplo). Escreveu a D. Maria I, pois gostaria de adquirir protagonismo na sociedade Portuguesa (o que nunca aconteceu pois, ao contrário de D. Maria, ela era uma liberal). É bem claro que gostaria de ter tido uma das suas cantatas representada em Portugal (o que, infelizmente, também nunca aconteceu). O título nobiliárquico português que o pai usufruía e que ela usava, foi reconhecido no Reino de Nápoles (embora retirado no momento do enforcamento, razão pela qual não foi decapitada, como competia a um nobre na altura). Para além disto, ela foi sempre conhecida em Nápoles como a “portoghesina,” quer dizer a “portuguesinha de Nápoles”, uma designação ternurenta.

Quão extraordinária foi esta mulher cheia de ideais?

Extraordinária! Aconselho vivamente a leitura de Leonor e José para melhor compreender o percurso de vida de Leonor Fonseca Pimentel. Foi Bibliotecária da Rainha Maria Carolina, foi poeta e escritora. Durante o breve período revolucionário de 1799 foi a editora de Il Monitore Napoletano, o jornal oficial da República Napolitana. Foi uma das mais altas representantes em Nápoles dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa. Uma ideia altamente inovadora na altura, foi que esta acreditava na educação dos cidadãos da nova República como forma de melhorar a vida do pobre povo napolitano, gente que vivia na mais abjeta miséria.

Por seu lado, o Abade, foi também uma figura extraordinária, ao ponto de impressionar Thomas Jefferson. Com que fama chega José aos Estados Unidos?

Não só o Abade impressionou Thomas Jefferson, como este o considerou, e cito “O homem mais ilustrado que jamais conheci.” E, de facto, assim foi, o Abade falava de tudo e de todos nos mais diversos meios científicos da época. Tinha a vivência de diversas cidades europeias como Roma, Nápoles, Londres e Paris, o que Jefferson, como cosmopolita que era, - e, no meu romance, já a viver reformado na sua plantação de Monticello - adorava. O Abade chegou a Filadélfia e apresentou-se a Jefferson, presidente da American Philosophical Society na altura, com cartas de recomendação das mais ilustres personalidades do seu tempo. Pessoas como André Thouin, Du Pont de Nemours e Lafayette.

A relação de amizade entre o abade e cientista português e o terceiro presidente dos Estados Unidos foi próxima?

Foi muito próxima, um assunto que eu relato em Leonor e José em grande detalhe. O que é deveras interessante é que estes dois homens, tão diferentes, tinham enormes afinidades sob o ponto de vista psicológico. E, a certa altura, eu relato como eles começam a partilhar segredos do foro íntimo. E se não partilham esses segredos de viva voz, os segredos começam a pairar nas entrelinhas da narrativa. Como é o caso de Sally Hemings, a mulata que era sua escrava e com quem Jefferson, já viúvo, teve vários filhos. Por parte do pai, Sally Hemings era meia-irmã da mulher de Jefferson.

Até que ponto o Abade é conhecido dos americanos em geral? A comunidade luso-americana conhece este nosso antigo embaixador tão especial?

O Abade é mais conhecido nos círculos diplomáticos de Washington do que como cientista. A contribuição portuguesa para a divulgação da vida e obra do Abade é pouco conhecida nos Estados Unidos, pois os diversos livros que existem sobre a matéria não estão traduzidos em inglês. É uma pena! Esta é uma das razões pelas quais eu escrevo em inglês, procuro um público mais alargado. Neste aspeto, seria de todo o interesse a estadia de um estudioso português na prestigiada American Philosophical Society em Filadélfia. O Abade Correia da Serra deu uma contribuição notável a esta instituição e esta dispõe de um vasto arquivo sobre aquele. Uma parte deste arquivo está acessível no site da instituição, e poderá ser consultado à distância. Um campo a abordar seria a contribuição do Abade para Jefferson reaver os diários da Expedição de Lewis e Clark. Outra contribuição seria prosseguir a investigação feita no livro, O Abade Correia da Serra na América, 1812-1820, de Richard Beale Davis. Felizmente, este livro está traduzido em português, com uma introdução do professor José Luís Cardoso, atual presidente da Academia das Ciências de Lisboa. Passei uns dias na American Philosophical Society quando estava a fazer investigação sobre Leonor e José e vi pessoalmente como a pesquisa naquela instituição é de grande vulto. Ainda hoje recebo a Newsletter, que leio com a maior atenção.

Já agora, Leonor é uma figura conhecida em Itália?

Ao fazer parte do Panteão dos Mártires da Liberdade, a figura de Leonor Fonseca Pimentel está imortalizada. Há hoje em dia um mural com o seu rosto no Quartieri Spagnoli de Nápoles, o bairro onde ela viveu. Há uma escola com o seu nome, e ainda inúmeros livros sobre ela. Há um livro muito bom sobre Leonor em Itália, da grande escritora e jornalista Maria Antonietta Macciocchi. Em 1999, para celebrar os 200 anos da queda da República Napolitana, Vanessa Redgrave encarnou a figura de Leonor no Teatro San Carlo em Nápoles. Pode ver-se no YouTube Eleonora, Oratorio Drammatico. Há ainda o filme com Maria de Medeiros, O Resto de Nada, baseado no livro do mesmo nome. Mas Leonor é muito mais conhecida em Itália do que em Portugal. Por essa razão eu fiquei deveras contente pela Minotauro ter feito a tradução de Leonor e José com o financiamento da Fundação Luso-Americana.

Como foi a receção do livro na versão em inglês?

Foi muito boa ao nível da critica literária, neste aspeto não podia ter sido melhor. Eu tenho um website onde a recetividade ao livro vem descrita em detalhe: https://www.julietaalmeidarodriguesauthor.com. Mas escrever um bom livro e atingir o grande público são coisas diferentes, tudo depende de um bom marketing. Um campo que eu respeito, mas abomino. Gosto de deixar este assunto aos especialistas na matéria.

Imagina-se a ir buscar outra figura portuguesa na América como inspiração para um livro?

De facto, não. Hoje em dia, eu gosto de trabalhar sobre três regiões/países e o livro que estou a escrever no momento inclui Portugal, Marrocos e o Império Otomano. O livro que tenho já na cabeça inclui de novo o Reino de Nápoles, Portugal e o Império Russo. Em ambos os casos, são figuras portuguesas que movem a narrativa.

Quer sugerir alguma leitura para quem deseje saber mais sobre este José e esta Leonor?

É fácil hoje em dia ir à internet e procurar informação sobre estas duas grandes figuras do Iluminismo português. Basta colocar os nomes em motores de busca como o Google. É esta uma das razões pelas quais eu adoro o século XXI, já não importa onde se vive, campo ou cidade. Toda a informação está na ponta dos dedos. O grande desafio é saber interpretá-la e isto, de facto, recai sob uma minoria, uma elite intelectual, que usa, criteriosamente, o poder imaginativo da inteligência. E tem uma coisa que está em saldo no mundo de hoje: honestidade intelectual. É este o grande desafio do século XXI. Eu passo os olhos por três jornais de língua inglesa diariamente, mas nunca busco os social media para qualquer informação fidedigna. É fundamental saber, e querer, separar o trigo do joio!

Leonor e José

Julieta Almeida Rodrigues

Minotauro 268 páginas

16,90 euros

Um romance sobre a “portuguesinha de Nápoles” e “o homem mais ilustrado” que Thomas Jefferson conheceu
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