Um Nobel à procura de um Óscar
Kazuo Ishiguro falou ao DN em setembro passado quando Viver, filme que escreveu e produziu, já se falava para os Óscares. O Nobel de Literatura está agora nomeado na categoria de melhor argumento adaptado, tal como o seu protagonista, Bill Nighy, melhor ator. Palavras sem filtros de um escritor cinéfilo que amanhã vai estar na grande festa de Hollywood.
O que muda quando trabalha para cinema em oposição ao mundo da literatura, sobretudo quando tem de lidar com as questões da indústria?
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Gosto de enfatizar que não sou um argumentista regular. Toda a minha vida escrevi ficção, mesmo só para mim próprio. Mas enquanto escritor o cinema foi sempre algo muito presente, sobretudo a partir do momento em que os meus livros foram negociados para adaptações. Há 35 anos que é assim. Se quer saber, enquanto falamos há sete projetos para serem adaptados...Depois estou sempre a receber argumentos que adaptam os meus livros, projetos que estão em desenvolvimento mas que depois colapsam. O cinema sempre esteve no meu horizonte, apesar de não contar com ele. Creio que ficaria louco se o cinema fosse a minha principal ocupação - é algo extremamente inseguro. Grande parte do processo tem a ver com conseguir angariar orçamento, ir a reuniões, etc, em vez de passar o tempo a fazer o trabalho criativo. Dito isto, ao não estar totalmente no cinema até gosto desse mundo. É bom estar ligeiramente à parte. Por exemplo, adorei fazer parte do júri do Festival de Veneza e do de Cannes. Gosto de discutir cinema e estou sempre a ver filmes. Ser espectador é uma parte muito importante da minha vida de escritor. Não teria escrito o que escrevi se não fosse a minha cinefilia. Julgo que a ficção na página ou no ecrã estão intrinsecamente ligadas.
Curiosamente nunca escreveu um guião a partir de um dos seus livros.
Não é nada tentador pois trata-se de material que eu já conheço. Seria um pesadelo, um pouco a lembrar o O Feitiço do Tempo, do Ramis. E do ponto de vista do filme, será sempre melhor vir alguém de fora com um olhar fresco.
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"Não teria escrito o que escrevi se não fosse a minha cinefilia. Julgo que a ficção na página ou no ecrã estão intrinsecamente ligadas"
Em Viver adapta Kurosawa. Qual a sua relação com Ikiru (1952)?
Ele e o Ozu foram os dois cineastas japoneses que passavam no circuito de salas "art-house" em Inglaterra quando era adolescente - não tive muito contacto com outros cineastas japoneses. Eles foram muito importantes e eram uma espécie de janela para ter um contacto com o Japão contemporâneo ou aquele que me ficava da memória da minha infância. E a importância de Ikiru-Viver foi mesmo tremenda para mim. Pareceu-me querer dizer-me como poderia seguir a minha vida. Fez-me ver que poderia haver grandes possibilidades de não conseguir ter uma vida espantosa ou criar algo que fique famoso mas que teria de aceitar quem sou e o lugar que o mundo de me dará. Foi um filme que me fez acreditar que era importante fazer algo mais, superar-me e viver a vida a dar tudo. Que mensagem inspiradora! Por isso, sempre pensei que poderia ser um filme interessante de ter um remake mas passado em Inglaterra e para uma nova geração. Porém, quem esteve envolvido neste projeto não quis apenas fazer um remake, queríamos cruzar este filme maravilhoso do Akira Kurosawa com outro tipo de material, em especial o tema do cavalheiro britânico, algo inapelavelmente inglês que se evaporou da sociedade inglesa.
Para alguém que já venceu um Prémio Nobel estar a ser sondado para a campanha dos Óscares com este filme é algo bizarro? Será que pensa nisso?
Confesso que o nosso objetivo é tentar que o Bill Nighy seja nomeado [foi nomeado para o Óscar de melhor ator]. Era uma felicidade e simbolizava que o nosso trabalho tinha sido bem feito. Sempre quisemos apoiá-lo nesse objetivo. Este é um filme muito de interpretação, embora seja muito complicado separar uma grande interpretação do valor de um filme. Para um ator brilhar o filme tem de estar bem. Um ator não consegue uma grande interpretação quando o resto não funciona. Ficaria muito feliz se o Bill Nighy venha a ganhar troféus com este filme, a sua interpretação é fantástica.
Há pouco falava em viver a vida a dar tudo. Depois de vencer o Nobel continuou assim?
Nem sei, tento não pensar muito no Prémio Nobel. Mas acho que tento sempre dar o meu melhor. O problema é quando já não me criticam porque tenho o prestígio de ser nobelizado. Esse é mesmo um problema e olhe que depois de ver 23 filmes na competição de Veneza vi que pode chegar ao cinema. Quando se chega a um certo estatuto ninguém tem a coragem de dizer ao realizador que o filme precisa de ser cortado uns 45 minutos! Lá porque é um espantoso realizador não quer dizer que não precise de um argumento ajustado! Claro que o nosso júri não deu o Leão de Ouro de forma unânime, mas seis ou cinco filmes todos gostámos. Em suma, houve alguns filmes bem interessantes. O Saint-Omer foi uma verdadeira descoberta! Posso dizer que a Alice Diop será uma nova voz do cinema e também gostei de Ursos Não Há, de Jafar Panahi. De resto, uma das tendências que menos gostei foi encontrar tantos filmes sobre artistas e as suas obras, foram 13 filmes em que as personagens eram realizadores, atrizes, chefes de orquestra ou escritores. Sinceramente, isso desgostou-me, sobretudo numa altura em que o mundo está no estado tão precário. Porquê tantos filmes sobre uma elite de artistas?! Isso é estar a falar para uma audiência muito reduzida. Será uma coincidência? A culpa é da covid?! Estarão os cineastas apenas a olhar para o seu umbigo? Atenção não estou a criticar individualmente nenhum desses filmes, alguns eram até brilhantes, como o próprio Ursos Não Há, onde o Panahi é o protagonista.
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