Um filme "avariado" numa festa demasiado segura

Cada vez menos portugueses ficam acordados para ver os Óscares. Segundo as audiências, menos 60 mil em relação ao ano passado. Culpa da falta de fé no Óscar português? Não, culpa de uma cerimónia chocha que valeu apenas pelo efeito emotivo dos vencedores de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, dos Daniels, o grande triunfador da noite.

João Gonzalez, o realizador de Ice Merchants, o primeiro filme português nomeado a um Óscar, não cabia de felicidade mesmo apesar da estatueta não ter vindo para Portugal. Ele e o seu produtor, Bruno Caetano, gravaram um vídeo logo a seguir à cerimónia onde mencionam que já puseram o pé na água e que agora cabe a outros repetirem a façanha.

Tudo isto numa altura em que a animação fica perto de atingir estrondosos números : caminha para os 10 mil espectadores em Portugal (com bilhetes a 2 ou a 3 euros), tendo já ultrapassado a barreira dos 200 mil em todo o mundo. A partir desta terça-feira, está também disponível no videoclube de todos os operadores nacionais de televisão e em duas plataformas de streaming. Atendendo ao índices de favoritismo, muitos são os que acreditam que Ice Merchants terá sido o filme mais votado pelos membros da Academia logo a seguir ao vencedor, O Rapaz, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo, de Charlie Mackesy e Peter Baynton.

Tudo chocho

Especulações à parte, os Óscares deste ano tiveram uma cerimónia chocha e desenxabida. O apresentador humorista Jimmy Kimmel terá jogado muito à defesa e a realização nunca apostou num formato de grande espetáculo. A Academia terá mesmo optado enfatizar a sua vocação de ser apenas um show de homenagem aos artistas do cinema, nada mais do que isso, sem inovações ou truques modernaços. Uma cerimónia à antiga que fez trinta por uma linha para não ser antiquada. Uma segurança que não teve abanões nem fatores externos como troca de envelopes ou bofetadas imprevistas. Aliás, essa rede de segurança fez com que houvesse um rigor que cortou o som num par de discursos após a regra dos 45 segundos.

Os 7 Óscares de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, por seu turno, têm algo de purga. 2023 vai poder ficar para a História como o ano em que a Academia deixou de ser académica e bota de elástico.

O que mais excêntrico tivemos foi a chegada ao palco de um burro supostamente irlandês para parodiar um dos maiores derrotados da noite, Os Espíritos de Inisherin, de Martin McDonagh, não se mencionando o burro (na verdade, foram mais do que um nas filmagens) herói de EO, o bravo conto de Jerzy Skolimowski, nomeado para melhor filme internacional. Foi pouco numa noite em que o melhor terá ficado nos bastidores e nas redes sociais. Por exemplo, toda a emoção da vitória de Ke Huy Quan, o melhor ator secundário por Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, dos Daniels, voltou a ter um glorioso regresso ao passado quando se cruzou com Harrison Ford, o seu amigo maior de Indiana Jones e o Templo Perdido, filmado em 1983. Na mesma sala, Steven Spielberg, realizador que na cerimónia dos Golden Globes também já tinha tido reencontro emocional com Quan. Igualmente o elenco de Os Goonies não se esqueceu de ir para a internet festejar esse Óscar - de recordar que logo a seguir a Indy o pequeno menino asiático era chamado para o imortal Os Goonies, produção de Steven Spielberg.

As consequências da vitória dos Daniels

Os 7 Óscares de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, por seu turno, têm algo de purga. 2023 vai poder ficar para a História como o ano em que a Academia deixou de ser académica e bota de elástico. Um filme com delírios de multiverso, uma loucura não domesticada e personagens com dedos de salsichas nunca poderia há uns anos estar aqui. Este é o sinal de que há esperança para que esta renovação dos membros traga de facto um continuado novo sangue a nível de gosto. Quando em março de 2022 os Daniels levavam esta excentricidade a Austin ao Festival SXSW nunca se pensou sequer que este era material oscarizável e até apetece imaginar como OVNI poderia ser este título ao lado de vencedores como Momentos de Glória (1981), de Hugh Hudson; Gandhi (1982), de Richard Attenborough; Uma Mente Brilhante (2002), de Ron Howard ou O Discurso do Rei (2011), de Tom Hooper.

Obviamente, esta vitória vai soar os alarmes dos grandes estúdios. É certo que a Disney, a Sony e a Warner vão querer voltar em força ao chamado "filme de Óscares" e tentar que 2023 tenha sido o ano de uma anomalia. A vitória dos Daniels pode, por outro lado, fazer com que se dê luz verde a projetos mais arriscados: esperam-se para breve mais projetos com elementos surreais, mais narrativa fragmentada e elencos cada vez com maior diversidade. Esta onda de simpatia perante um filme "diferente" e verdadeiramente jovem e desempoeirado não pode ficar por aqui.

A A24 a dominar

A outra "vantagem" da conquista de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo é consagrar de uma vez por todas um estúdio indie como a A24, sobretudo numa altura em que a palavra indie é léxico do passado e a memória de Moonlight (2016), de Barry Jenkins, já se estava a desvanecer. Este ano, o logo A24 vai ser visto em alguns dos títulos mais ansiados, como The Iron Claw, de Sean Durkin, o tal filme que terá mudado o rosto de Zac Efron, Beau tem Medo, de Ari Aster, com Joaquin Phoenix numa espécie de Alice no País das Maravilhas das doenças mentais e Past Lives, de Celine Song, uma das maravilhas da Berlinale 2023.

Por fim, Steven Spielberg esteve com cara de muitos amigos na hora da derrota - é um cavalheiro também nesta coisa dos prémios depois de já ter vencido nos Globes e não deixa de ser irónico ter dito que Tom Cruise salvou Hollywood com o sucesso de Top Gun: Maverick. Pois bem, Cruise foi o ausente da noite. Não quis promover uma festa que existe para levar os espectadores de tv ao cinema...

dnot@dn.pt

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