Um banqueiro no coração das trevas
O imenso verniz do privilégio. É esse que não quebra na primeira obra do suíço Andreas Fontana, um objeto tão surpreendente quanto intrigante, apetece dizer, votado a alguma indiferença num panorama feroz de estreias que tende a ofuscar as verdadeiras descobertas. Azor - Nem uma Palavra é uma descoberta, desde logo porque retrata o dito mundo do privilégio e da riqueza com uma tonalidade excecional. Mas é também uma descoberta porque nos deixa a sós com os gestos de cinema, a autoexplicação do que se vê e ouve, sem bengalas narrativas: apenas as personagens, o modo como se comportam, a roupa que vestem, os ambientes em que se movem, o que se pressente no seu entorno, as conversas e os silêncios.
A câmara estável de Fontana segue um banqueiro suíço e a sua esposa, chegados a Buenos Aires em 1980 para investigar o desaparecimento de um colega dele, René Keys, cuja ausência se tornará uma omnipresença incómoda. Talvez mais inquietante do que o que se vislumbra na rua, apenas no início: dois jovens encostados à parede a serem interrogados por militares com armas apontadas. O casal de visitantes, serenado pelo motorista dentro do carro, que desvaloriza a ocorrência, não se apoquenta muito com a interpretação da realidade exterior, mas o que de facto se passa do outro lado do vidro é um reflexo da Guerra Suja (1976-1983), a ditadura militar argentina marcada por perseguições, tortura e desaparecimentos. Um cenário de relance que não volta a aparecer em Azor, porque o mundo do banqueiro é outro, e o tipo de violência que o atravessa atua noutra camada de perceção.
Mais do que investigar, Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione) veio de Genebra numa espécie de visita diplomática, para preencher a cadeira vazia deixada por Keys e segurar os clientes abastados na Argentina, que sentem o risco associado ao novo regime político. E é num circuito secreto de encontros mais ou menos aprazíveis, entre salas e salões elegantes, piscinas privadas e passeios a cavalo, que o banqueiro politicamente ingénuo vai descendo até à subtil versão do "coração das trevas" que Fontana tem para nos oferecer, com ou sem coronel Kurtz no fim da viagem.
Pela forma como esta referência se insinua, mas também pela graciosidade com que a ação escapa ao determinismo do thriller político, Azor define-se pelo seu poder sugestivo. Não se trata de perceber o linguajar da banca, de entrar naquele universo pelos seus códigos específicos, mas de captar a atmosfera do dinheiro. No caso, uma atmosfera particularmente malsã, com o terror de um período histórico a infiltrar-se nos tecidos delicados e na aura melancólica de alguns dos clientes, um deles pai de uma jovem desaparecida. Em última instância, o que fascina em Azor é a simultânea economia e requinte das imagens, com um jogo de cores quentes e sombras que conduzem a paranoia de mansinho, em direção não se sabe bem a quê. Sendo uma longa-metragem de estreia, Andreas Fontana aproxima-se do golpe de mestre no design do vazio moral - de resto, o Apocalypse está nos detalhes.
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