Tudo começou com o simples desenho animado de um rato que tenta correr pela vida enquanto um gato lhe prende a cauda com uma unha. Assim se apresentaram ao mundo Jasper e Jinx - antes de serem batizados Tom e Jerry - na curta-metragem Puss Gets the Boot (1940). Mas se ao início é o ratinho pestanudo que está em apuros, a história inverte-se quando a dona do bichano ameaça pô-lo no olho da rua pelos estragos domésticos da brincadeira... aí já é o roedor que tem a faca e o queijo na mão. Estava inaugurada a fórmula narrativa do caçador trapalhão e da presa engenhosa, que iria marcar os outros 113 episódios escritos e realizados, até 1958, por William Hanna e Joseph Barbera (os criadores destes e de outros desenhos animados populares, como Os Flintstones e Os Jetsons). E continua a ser isso que define o jogo do gato e do rato..No filme agora assinado por Tim Story, que é apenas a segunda longa-metragem deste universo (a primeira chegou ao grande ecrã de 1992), Tom e Jerry surgem como desenhos embutidos na vívida realidade urbana de Nova Iorque - a técnica usada por Robert Zemeckis em Quem Tramou Roger Rabbit? São tempos difíceis e o gato, envergando uns óculos escuros para se fingir cego, ganha a vida a tocar piano na rua. Sustento que consegue manter até Jerry arruinar o negócio ao mostrar as suas habilidades de dança e, num piscar de olhos, tornar-se ele a estrela que atrai esmolas..Até aqui, tudo de acordo com o esquema clássico da hostilidade que está no ADN dos bonecos. Mas o filme, com uma inspiração tosca, rapidamente se desliga da essência das personagens para as fazer "reféns" de uma intriga de humanos ricos e excêntricos, com Chlöe Grace Moretz na pele de uma vigarista que consegue emprego num hotel 5 estrelas durante os preparativos de um casamento da alta sociedade. Qual a missão que a jovem luminária tem a poucos dias do grande acontecimento? Apanhar um rato que anda à solta naquele lugar de luxo. Pergunta para queijinho: qual a solução? Um conhecido gato cinzento que, por acaso, estava no sítio certo à hora certa..Nesta adaptação contemporânea em que Tom e Jerry têm redes sociais e Moretz representa a millennial sem perspetivas de futuro numa sociedade a rebentar pelas costuras, nada consegue renovar genuinamente o espírito da série original, embora sejam evidentes os esforços de colocar a nostalgia ao nível da celebração desajeitada. A festa inclui ainda o buldogue Spike, a gata Toodles Galore e Butch, o gato preto, para além de outros convidados especiais de desenho animado. Enfim, todos "respiram" mal no ambiente citadino..YouTubeyoutubekP9TfCWaQT4.Para os mais novos (há versão dobrada) será uma maneira de incentivar o contacto com o imaginário de uma dupla que marcou a história da animação pela sua premissa simples e slapstick inventivo. Mas quem cresceu com os desenhos de Hanna e Barbera terá muito pouco a extrair das réplicas de Tim Story, que raramente pisam a linha do politicamente incorreto. Tom & Jerry é fruto do seu tempo, de uma certa renovação insípida dos universos que preencheram as nossas infâncias. E a verdade é que não se consegue deixar de perseguir o ratinho das referências populares..Com mais de oitenta anos no pêlo e sete Óscares na categoria de melhor curta de animação, Tom e Jerry já atravessaram várias fases. Depois do período Hanna-Barbera, e sempre com produção da Metro-Goldwyn-Mayer, as personagens começaram por ser recuperadas pelo ilustrador Gene Deitch, que em 13 episódios, no início dos anos 1960, desiludiu muitos fãs com os seus elementos surreais, grafismo e efeitos sonoros considerados excessivos. Ainda assim, a dupla clássica conseguiria destronar os Looney Tunes no grande ecrã, esses desenhos animados da Warner Bros. que durante muito tempo seguraram um recorde..Seguiu-se na manutenção do legado o animador Chuck Jones, que tinha trabalhado mais de três décadas para a Warner e, entre 1963-67, assinou para a MGM 34 curtas do gato e do rato. Operou algumas adaptações no desenho das personagens (Tom ganhou uns retoques nas sobrancelhas e um cinzento mais claro, e Jerry uns olhos maiores e orelhas mais arredondadas), mexeu com as suas personalidades e nos créditos de abertura substituiu o leão do logótipo dos estúdios por Tom a tentar imitar o rugido do felino mor... Terminava aqui a era de ouro da animação americana..A partir de meados dos anos 1970, a sobrevivência de Tom and Jerry ficou a dever-se à televisão. Hanna e Barbera voltaram a realizar 48 curtas de 7 minutos (1975-77), desta vez convertendo as duas personagens em amigos aventureiros, anulando as peripécias da rivalidade de maneira a cumprir os códigos de não violência exigidos pelos programas infantis..Antes de os criadores tomarem as rédeas uma terceira vez na década de 1990, com Tom and Jerry Kids, que acompanha a tendência da babyfication (versões mais jovens das personagens originais), houve ainda a variante The Tom and Jerry Comedy Show, mais ou menos dentro da lógica do original, e no novo milénio a Warner Bros. Animation tomou conta deste património, que mantém até aos dias de hoje. Em fevereiro deste ano chegou a lançar duas novas curtas na HBO Max para assinalar o 81.º aniversário da famosa dupla e promover o filme que agora chega às salas de cinema..dnot@dn.pt