Tom Holland: “O Cristianismo é de longe o legado mais duradouro e mais transformador do Império Romano”
Roma teve mais sucesso nos tempos da República do que durante a era imperial. É possível afirmá-lo?
Não tenho certeza se isso é verdade. É certamente sob a República que Roma emerge para se tornar a maior potência no Mediterrâneo, e não há dúvida de que isso é uma conquista absolutamente bizarra. E acho que estamos tão habituados à ideia de que o Império Romano existe, que muitas vezes esquecemos como é estranho que uma cidade que começa como um bando de ladrões de gado amontoados em colinas cercadas por pântanos surja para conquistar e se torne a primeira potência a controlar toda a costa marítima do Mediterrâneo. Mas acho que as maiores conquistas do Império fazem-se sob um sistema autocrático e, acima de tudo, militar. Quer dizer, essencialmente o Império duplica de tamanho desde a morte de Júlio César até, digamos, a época de Trajano. E é sob o Império que se estabelece a estrutura de um Exército permanente que permite que essas conquistas sejam realizadas e mantidas. Mas é também sob o sistema imperial que se obtém uma estrutura duradoura que permite ao Império, dentro dos seus limites, permanecer em paz. E penso que é devido ao sistema autocrático que este Império conquistado sob a República consegue resistir. Penso que se não tivesse surgido um sistema autocrático, o Império de Roma teria entrado em colapso e se teria desintegrado.
Mencionou Júlio César. Normalmente, vejo muitas referências a César como o primeiro imperador, não se assumindo. E na verdade, até Augusto evitou usar o título. Mas é possível dizer que, em termos práticos, Júlio César foi realmente o primeiro imperador romano?
Bem, depende do que você entende por imperador. A palavra imperador nas línguas europeias vem da palavra latina imperator, que passa a significar o que chamamos de imperador. Mas originalmente significava um general vitorioso. E César foi claramente um general vitorioso. Então, nesse sentido, era absolutamente um imperator, como todos os grandes generais romanos sob a República. O que Augusto faz é pegar na palavra imperator e torná-la um de seus títulos pessoais. Assim, Augusto, nascido Caio Octávio, sinaliza o seu poder assumindo também vários nomes, dos quais Augusto é obviamente o mais lembrado. Quero dizer, Augustus, e porque nós, novamente, nos habituámos, não paramos muitas vezes para pensar no que significa. Mas significa alguém que está a meio caminho entre o humano e o divino. Então é carregado com todos os tipos de significado sobrenatural. E o mesmo se aplica ao imperator. Ele toma como sua esta palavra que foi aplicada a todos os maiores heróis de Roma. E quando constrói o seu templo a Marte, no centro de Roma, alinha-se com esses seus antecessores, todos esses imperatores, todas essas pessoas que foram aclamadas como imperatores. Está essencialmente a identificar-se com todos eles, e a dizer que, de certa forma, é o somatório dessa tradição. E porque Augusto vive tanto tempo, e porque o seu prestígio é tão profundo, e porque as suas realizações como o homem que cura as feridas de Roma depois das guerras civis e a coloca numa base estável são tão grandes, o seu exemplo significa que todas as pessoas que o sucederam também assumirão esse título. E é assim que aquilo que os romanos durante a República consideravam o significado de um general vitorioso, gradualmente, ao longo dos séculos que se seguem, passa a significar o que queremos dizer hoje com imperador. Então, nesse sentido, Augusto é o primeiro imperador.
E ao mesmo tempo, se Augusto se tornou realmente o imperador em termos modernos, mantém, com uma certa formalidade, as instituições republicanas. Isso é por sua convicção, ou mais por cautela?
Augusto é filho adotivo de Júlio César. E está bem ciente do que acontece a Júlio César. Ele sabe que a tentativa de construir uma autocracia termina com César assassinado pelos seus senadores. Augusto não quer que isso lhe aconteça a ele. Durante toda a sua vida, desde a morte de César, quando ele se torna herdeiro de César, e nem tem sequer 20 anos, o seu objetivo, penso eu, é assumir o controlo do Estado, tornar-se o homem mais poderoso do Estado romano. E ele faz isso com total crueldade quando jovem. Mas uma vez estabelecido como o único governante do mundo romano, uma vez derrotado António e Cleópatra morta e o Egito tornado sua propriedade pessoal, então ele é rico e poderoso o suficiente para não precisar de exibir o seu poder. Ele sabe que o tem. Todos sabem que ele o tem. E todos também sabem que a alternativa ao seu Governo é o regresso à guerra civil, o que ninguém deseja nessa altura. E então, essencialmente, o que acontece é que ele finge não ser tão poderoso quanto é, e o Senado finge ser mais poderoso do que é. E há uma espécie de minueto de engano mútuo. Ambas as pessoas sabem o que são, ambos os lados sabem o que estão a fazer. E permite que Augusto construa, dentro dos quadros do antigo sistema republicano, este novo sistema autocrático de governo. E o seu sucesso é evidenciado pelo facto de ele morrer na cama.
Começa o seu livro com Nero, que não morre de velhice. E a minha pergunta é: Nero, e antes dele Calígula, é visto como um imperador terrível. Isto é completamente verdade em termos de História?
Bem, depende da perspetiva que temos. Assim, Nero é mau essencialmente para quem é senador romano, e os historiadores romanos são das classes senatoriais, cujo amor próprio é ofendido pelo poder autocrático dos Césares. E assim os historiadores romanos, dos quais Tácito é o maior, tendem a considerar os imperadores bons ou maus. E a definição de um bom imperador é um imperador que respeita o Senado, e um mau imperador é um imperador que insulta o Senado. E visto sob essa luz, Nero é indiscutivelmente um mau imperador. Além disso, Nero é o primeiro imperador a perseguir os cristãos. E, claro, os cristãos, no longo prazo, escreverão a história. Portanto, Nero não é apenas condenado como um tirano brutal pelos historiadores romanos, mas também como o Anticristo pelos cristãos. Portanto, não é surpreendente que a reputação dele seja terrível. E acaba suicidando-se porque as províncias se revoltaram. E isso é uma medida de fracasso. Por esse padrão, ele era um mau imperador. E não morreu na cama. Por outro lado, penso que Nero incorpora tradições romanas muito antigas e veneráveis, uma espécie de tradição populista, uma tradição de apelar às massas populares por cima das cabeças das elites senatoriais. E Nero faz isso de maneira muito, muito eficaz e extravagante, a tal ponto que ainda é lembrado até hoje. Quero dizer, a maioria dos imperadores romanos não são lembrados. Nero é lembrado. E, em parte, isso deve-se ao grande olho para o drama que ele possui, e que é uma parte importante para se ser uma figura política de sucesso em Roma. Por isso, acho que se alguém das massas, se alguém da plebe, escrevesse uma história de Nero, provavelmente teríamos uma visão um pouco mais completa sobre ele. Quero dizer, é como se, daqui a 2000 anos, tudo o que os historiadores sabem sobre Donald Trump fosse o que vem publicado no New York Times. Há pessoas que vão votar em Trump.
Este ano dos quatro imperadores, 69 d.C., é algo completamente único na história romana?
Bem, não é, porque, claro, o Império Romano já se tinha despedaçado três vezes depois de César ter atravessado o Rubicão no século I a.C. Houve três ciclos terríveis de guerra civil. E é daí que emerge Augusto. E é por isso que, em geral, a maioria das pessoas no Império fica feliz em aceitar a autocracia. E 100 anos depois do estabelecimento da supremacia por Augusto, as pessoas estão praticamente a assumir que a paz é um estado permanente. E a ideia de que o Império possa voltar a cair nessa condição de guerra civil parece, para muitas pessoas, impossível de contemplar. Mas quando Nero morre há receios, porque não há ninguém com o sangue de Augusto nas veias, e o sangue de Augusto é divino, Augusto tornara-se um deus. Portanto, há uma qualidade sobrenatural na Casa de César, na linhagem dos seus descendentes. Quando Nero se vai, e essa linha está morta, então a questão coloca-se: quem lhe sucederá? O que torna alguém um imperador? E a resposta sempre esteve lá. O que faz um imperador é o comando dos Exércitos. Quando não se tem alguém que tenha direito a esse título em virtude da sua linhagem, então fica muito evidente que a pessoa que se tornará imperador é aquela com o maior número de legiões atrás. E é disso que se trata no ano dos quatro imperadores. Quero dizer, é a demonstração disso. E há certamente, no auge desse ano, pessoas que pensam que o Império está condenado, que a civilização entrará em colapso, que o mundo está a aproximar-se do fim. O facto de isso não acontecer deve-se em parte à competência dos Flavianos, a dinastia que finalmente chegou ao poder na sequência do ano dos quatro imperadores. Mas também reflete a força fundamental dos alicerces sobre os quais Augusto construiu a autocracia.
Mencionou Vespasiano e Tito, da Dinastia flaviana, e também Trajano e Adriano. É importante para a continuidade e sucesso do Império Romano que em determinado momento, em diferentes séculos, surjam duplas de imperadores de alta qualidade e muito ligados até pela linhagem ou por via da adoção?
O sistema autocrático que prevalece em Roma não é óbvio. Eles não têm reis. Ainda existe a pretensão de que seja uma República, de que essas formas republicanas persistam. E isso significa que quando um imperador morre, não há forma constitucional de facilitar a pessoa que chegará ao poder em seguida. E é por isso que a morte de um imperador representa sempre um perigo particular para a estabilidade do Estado. Mesmo com a morte de Calígula, houve efetivamente um golpe que levou Cláudio ao poder. E é por isso que a morte de Nero é tão traumática e desestabilizadora. Vespasiano, quando chega ao poder, tem a vantagem de ter dois filhos, Tito e Domiciano. Então dá-se a primeira sucessão de pai para filho. E eles são todos muito, muito capazes. Quero dizer, no caso de Domiciano, o Senado não gosta dele, mas era claramente muito, muito competente. Após a sua morte, ele é sucedido por três homens que não têm herdeiros masculinos. Nerva, depois Trajano, e depois Adriano. Mas o que eles fazem acontece porque em Roma existe a noção de que um homem pode adotar alguém como seu herdeiro, e essa pessoa então é efetivamente seu filho. Quer dizer, é isso que permite que Augusto seja filho de César. Isto é uma grande vantagem, porque significa que se tivermos um imperador que não tenha filhos, ele poderá escolher a pessoa mais competente, mais capaz, mais proficiente no Império para lhe suceder, que é o que Nerva faz com Trajano e o que Trajano faz com Adriano. Acho que é revelador que a famosa linhagem dos cinco bons imperadores de que as pessoas falam no século II chega ao fim quando surge um imperador, Marco Aurélio, que na verdade tem um filho e que é sucedido por esse, Cómodo, que é tão mau que aparece em Gladiador como exemplo de mau imperador. Mas é vantajoso para o Império e para a estabilidade do Império que existam figuras tão capazes como Trajano e Adriano, sim.
Qual é o impacto do Cristianismo no Império Romano? Ainda é o Império Romano ou há algum tipo de mudança na natureza do império?
Bem, neste período de que falo, séculos I e II, é insignificante. Na introdução do livro, comparo-os aos mamíferos de um ecossistema mesozoico, correndo por aí, mas mal notados pelos dinossauros que estão a invadir a selva, a floresta. No longo prazo, penso que o Cristianismo é totalmente transformador na moral, na ética e nos pressupostos culturais de Roma. Não completamente. O Cristianismo é claramente moldado pelo sistema imperial no qual é incubado, mas, a longo prazo, o Cristianismo é de longe o legado mais duradouro e mais transformador do Império de Roma. E, de certa forma, penso que é o que permite a Roma durar tanto tempo, ou pelo menos ao Império Romano durar tanto tempo, até à queda de Constantinopla no século XV. Porque, ao contrário de Edward Gib- bon, que no seu Declínio e Queda do Império Romano argumenta que o Cristianismo mina e corrompe a capacidade marcial dos romanos para defenderem o seu Império, penso que, na verdade, o que o Cristianismo faz é dar ao Império uma noção de cidadania que deixa de estar vinculada a uma única cidade, mas torna-se sim universal. Fornece uma estrutura ideológica para compreender isso, que é mais eficaz do que qualquer outra coisa que esteja em oferta. E permite que as pessoas, dentro do Império, sintam um sentido de identidade que não é apenas romano, mas também algo mais profundo do que isso. E é esse sentido de identidade que é coerente até o século XV, na parte oriental.
É possível ver na Igreja Católica Romana algum tipo de continuidade com o Império Romano, ou é uma ilusão, geradas apenas porque o Papa está baseado em Roma?
Até certo ponto. Penso que o facto de Roma ser a capital primordial do Império confere ao bispo de Roma um estatuto que supera o dos patriarcas de Constantinopla ou Alexandria. Contra isso, penso que o papado é como um cuco no ninho romano, que, embora as memórias de Roma perdurem, embora as vestimentas usadas pelos padres sejam romanas, embora as dioceses que ainda hoje temos em tudo o que foi o Império Romano possam ser mapeadas nas antigas estruturas administrativas do sistema imperial, embora isso expresse o tipo de contexto político em que o cristianismo emergiu, não acho que seja fundamental . E penso que a transformação de pressupostos morais e ética sexual que a Igreja, na sequência da conversão de Constantino, gradualmente começa a impor no mundo romano é tão profunda, que ver a Igreja Católica como simplesmente uma extensão do Império Romano está muito errado. Penso que a única coisa a que se apega e que herda de Roma é esta ideia de ser católico ou de ser universal. Quero dizer, isso não é um dado adquirido. Isto é algo que penso que decorre da reivindicação de Roma à posse de um império global. E penso que, nesse sentido, o Cristianismo é um produto disso. Mas penso que os seus enquadramentos e pressupostos morais são tão profundamente diferentes daqueles que existiam antes, que penso que faz mais sentido pensar no Cristianismo como algo transformador em vez de uma herança de Roma.
Quando pensamos nos Estados Unidos nos primeiros anos da nação, os Pais Fundadores são muito inspirados na República Romana, mas hoje em dia quando olhamos para a América vemos mais a Roma Imperial. Faz sentido para si, como historiador, essa comparação?
Bem, a República ainda é uma república. Quero dizer, os Estados Unidos ainda são uma República. Penso que qualquer Estado que se modele na República Romana, e claro que isto também se aplica à França no período da Revolução de 1798, tem de estar consciente de que existem dois perigos. O primeiro é que surgirá um César. Então é obviamente isso que acontece na República Revolucionária Francesa: Napoleão emerge e torna-se um César. Uma das formas pelas quais os Pais Fundadores conseguem viver de acordo com a ideia de que são os herdeiros da República Romana nos seus dias heroicos e difíceis é que Washington, ao contrário de Napoleão, não toma o poder. Governa como presidente e depois retorna ao seu arado, como Cincinato. Mas acho que a ideia, a ansiedade de que a República Americana seguirá o caminho de Roma, é uma sombra constante. E toda a conversa que temos agora sobre Trump ou o que quer que seja que ele possa implicar, tem sido uma constante ao longo da História Americana. As pessoas estão sempre preocupadas com isso. E, claro, a outra preocupação é que não é apenas a queda da República Romana, mas também a queda do Império Romano. E penso que quando se tem um senado e uma capital que são deliberadamente modelados na arquitetura romana, a ansiedade de que a sua cidade possa seguir o caminho do Fórum é novamente completamente natural. E penso que explica uma espécie de uma ligeira tensão apocalíptica dentro do discurso americano que está absolutamente presente. Mas, novamente, não creio que a História ensine lições como essa. Não creio que se um país for uma República, inevitavelmente se tornará um Império e depois cairá nas mãos dos bárbaros.
Pax - Guerra e Paz na Idade de Ouro de Roma
Tom Holland
Vogais
480 páginas