Todos a bordo, sem distanciamento social

Um dia inacreditavelmente caótico na vida do condutor de uma carrinha de transporte de incapacitados: <em>Liberdade</em> é a estreia Cinema Bold desta semana na plataforma Filmin e nos videoclubes das televisões.
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Nestes dias em que o cinema em casa surge como uma inadvertida fonte de refrigério, um filme de humanismo literalmente sobre rodas como é Liberdade parece cair que nem ginjas. Enfim, esta longa-metragem de um russo radicado nos Estados Unidos, Kirill Mikhanovsky, não será um objeto perfeito, mas assenta numa filosofia positiva que aponta na direção certa, mesmo que para lá chegar tenha de dar uma volta monumental...

Ao volante está Vic (Chris Galust, ator que se estreia no ecrã), o jovem condutor de uma carrinha que transporta pessoas com diferentes deficiências, numa azáfama entre o cumprimento de horários e uma extraordinária boa vontade para salvar situações, por mais caricatas que sejam.

Na origem desta personagem está a própria experiência do realizador enquanto imigrante, que nos primeiros tempos em território americano trabalhou como condutor de um desses veículos de transporte para pessoas incapacitadas. Ele é a peça no centro do "dispositivo" de ação, mas acaba por ser engolido por este. O filme começa logo com o pânico dos atrasos, à medida que Vic vai parando de porta em porta e desce para ajudar os seus clientes nos gestos matinais ou os acomoda na carrinha.

Mas isto é apenas o princípio de um dia rocambolesco: pressionado pelo avô e o seu grupo de velhos amigos russos, que ficaram sem transporte para ir ao funeral de uma vizinha, o nosso herói não é capaz de negar uma boleia, ainda que a traseira fique amontoada de gente e tenha à espera quem precise de chegar a horas às suas atividades. Junta-se à festa um vigarista hiperativo que se faz passar por sobrinho da falecida, uma estrada cortada por causa de uma manifestação e, entre telefonemas de ameaça de despedimento, uma cliente, com Esclerose Lateral Amiotrófica, prestes a passar-se dos carretos com a autêntica feira em que se converteu um serviço quotidiano... E não acaba aqui.

A comédia de absurdo de Mikhanovsky funciona pela imprevisibilidade de algumas situações, mas é francamente exagerada noutras, perdendo-se o brilho do protagonista no meio deste escarcéu comunitário com alma inclusiva. Como se num só filme fosse possível articular à pressa a doidice de Kusturica com a visceralidade de Cassavetes - no final, é preciso recuperar o fôlego.

O título Liberdade é uma piscadela de olho ao sonho americano, e não há dúvida de que o filme consegue passar o retrato de uma certa América longe do ideal de "beleza cinematográfica". Essa ideia é interessante e fortalece a mensagem de amor e solidariedade que está na engrenagem de tudo, embora uma boa dose de subtileza não fizesse mal a ninguém. No fundo, com o seu estilo desajeitado, este é um filme de coração grande e cabeça a mil à hora.

** Com interesse

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