Todo o cinema de Ian McEwan

Chega nesta quinta-feira mais um Ian McEwan adaptado ao cinema, Na Praia de Chesil. Uma bela adaptação, por sinal. O autor, que aqui é também argumentista, contou ao DN como é a sua relação com o cinema.
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"Nem imagina como foi motivante para mim mudar tanto deste meu romance. Sabe, há muita coisa que o cinema consegue e a literatura não. Queria muito usar essas possibilidades e a primeira coisa que quis foi introduzir a cena da loja de discos e da menina." Palavras de Ian McEwan, num arranha-céus de Toronto, véspera da antestreia mundial de Na Praia de Chesil, filme que escreveu a partir do seu romance homónimo. É um homem tranquilo, sem medo de que alguém possa começar a pensar que o argumentista está a ganhar no braço-de-ferro ao escritor. Isso é um disparate e o premiado escritor é o primeiro a sabê-lo, mesmo quando no mesmo festival de cinema tem outro filme em estreia: A Balada de Adam Henry, também com argumento escrito por si e adaptado de um dos seus mais celebrados romances.

McEwan e o cinema é um caso de amor forte. Já tem barbas e nestes tempos parece estar a atravessar uma nova lua-de-mel, depois dos muito badalados Estranha Sedução (1990), com Harold Pinter a adaptar o seu livro e Paul Schrader a dirigir; Inocente (1993), de John Schlesinger, com Anthony Hopkins; O Fardo do Amor (2004), de Roger Michell, com Daniel Craig; e, sobretudo, o brilhante Expiação (2007), de Joe Wright, filme que acabou na corrida aos Óscares. Mas para lá de argumentos originais e adaptações aos seus romances, este homem confessa também a sua paixão como espectador, embora sublinhe um problema: "Vivo numa zona do campo muito remota. O cinema mais próximo é a mais de 20 quilómetros de distância... Um cinema, já agora, não muito bom, devo dizer. Claro, por tudo isso investi num bom cinema em casa. Por dois mil dólares arranja-se uma televisão com alta definição muito aceitável e um som dolby perfeito. Portanto, também fico muito feliz por ficar no sofá a ver cinema na companhia de um bom copo de vinho. Muitas vezes, quando os amigos vão lá a casa jantar, a coisa também inclui sessão de cinema. Ainda no outro dia, o Richard Eyre [o realizador de A Balada de Adam Henry, filme bem interessante que chega em breve] foi lá e vimos o Manchester By the Sea! Pena ser um bocadinho longo, mas é muito bom... O Casey Affleck é espantoso e creio que ele vai ser o protagonista de Stoner, baseado num livro de John Williams que ajudei a recuperar..."

Tudo está ligado, já se percebe. Em Na Praia de Chesil, o tom descritivo e de detalhe quase teatral é captado no filme na perfeição por um olhar verdadeiramente "cénico" pelo realizador Dominic Cooper, um homem dos palcos londrinos que aqui se estreia em cinema. Na Praia de Chesil entra já para a coleção das melhores adaptações alguma vez feitas a um livro de McEwan e o próprio não esconde a felicidade: "Tenho tido sempre muita sorte ao longo dos anos. Olho para trás e lembro-me como o Andrew Birkin adaptou de forma maravilhosa The Cement Garden - foi aí que tudo começou no cinema. Com O Inocente não correu tudo como queríamos, mas deu para eu aprender imenso. Quanto a Expiação, o segredo foi a escolha dos atores, em especial a Saoirse Ronan, que agora está em Na Praia de Chesil. Se pudesse, os filmes com a minha marca teriam sempre a Saoirse..."

Com a sua voz plácida, Ian McEwan não faz também nenhum alarido com questões sagradas como as de um escritor visitar ou não um plateau de um filme baseado numa das suas obras. Fica-se com a impressão de que para ele não há tabus: "Não tenho problemas em visitar as filmagens, mas gosto de me sentir útil. Antes pensava que um plateau era um local excitante. Qual quê! Um décor de cinema é um local muito aborrecido. Um escritor num plateau pode ser o único de braços cruzados. Às vezes fico ali a fazer conversa fiada com os atores e a comer sandes que me põem doente. Mas gosto de ir quando me chamam e me pedem para alterar uma ou outra linha dos diálogos. Em Na Praia de Chesil a minha visita foi sobretudo de cortesia..."

Ainda se ouve o riso singelo do autor e deixamos a pergunta se tem consciência de que a sua presença pode trazer peso à equipa. A resposta vem depois de breve pausa: "Sei que é importante não ser a consciência negra de um projeto nem minar as decisões de um realizador, em especial num projeto tão íntimo como este. Sei perfeitamente que não posso ter comentários do género não gosto como ela se está a assoar... O máximo que tem acontecido é eu passar algumas notas ao realizador numa pausa para o café ou lembrar-lhe algo que estava combinado. De resto, sinto mesmo que às vezes a minha presença não ajuda."

No fim, antes de a assessora de imprensa começar a fazer sinais de linguagem gestual a simbolizar que a hora de Portugal já está em derrapagem, há ainda tempo para falar do prazer. O prazer de escrever um argumento compara-se ao outro prazer, o de criar literatura? "Não, o prazer é outro. Tenho prazer, mas é um prazer que está do lado da antecipação. Um argumento não é uma obra de arte, é antes um guia de instruções. Quando comecei a escrever argumentos era mais rápido: conseguia umas cinco, seis páginas por dia. Agora não vou além de uma ou uma e meia..."

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