É bem possível que no dia 2 de março, em Los Angeles, Timothée Chalamet ganhe um Óscar pela sua interpretação de Bob Dylan no filme A Complete Unknown (a partir de quinta-feira nas salas portuguesas). E não será preciso especular sobre as possíveis resistências que o evento desencadeará porque, em boa verdade, elas já andam por aí... Afinal de contas, não é verdade que, numa conjuntura contaminada pelo mesmo tipo de preconceitos, muito boa gente não escondeu o seu choque por Dylan ter recebido o Nobel da Literatura em 2016?A questão, entenda-se, não se esgota nas muitas ou poucas semelhanças da performance de Chalamet a imitar o criador de The Times They Are a-Changin’. Aliás, convém esclarecer que não se trata de discutir ou avaliar um mero jogo de imitação - estamos perante um filme genuíno, quer dizer, um sério e multifacetado objeto de cinema, não no palco de um concurso televisivo de “talentos”.Dito isto, convém também não esquematizar o trabalho de Chalamet na sua “reencarnação” de Dylan. Claro que aquilo que vemos - e ouvimos - no ecrã está longe, muito longe de se reduzir ao voluntarismo de alguém que nos propõe uma “homenagem” de espírito amador. Chalamet foi a primeira escolha do realizador James Mangold e, logo nos primeiros meses depois do anúncio do projeto, em 2020, começou a estudar o universo de Dylan e, mais especificamente, a aprender a cantar, usando guitarra e harmónica.O desenvolvimento do filme foi profundamente afetado pela pandemia, com várias interrupções e recomeços, sem esquecer o período em que Mangold teve de rodar e acompanhar a pós-produção de Indiana Jones e o Marcador do Destino (lançado no verão de 2023).Para compreendermos a ousadia, e também o calor humano, de um filme como A Complete Unknown, valerá a pena sublinharmos o mais óbvio: nascido a 24 de maio de 1941, em Duluth, Minnesota, Dylan nunca foi uma personagem fácil, quanto mais não seja porque a sua resistência a ser catalogado em termos artísticos ou ideológicos, mais do que um dado incontornável da sua biografia, contamina qualquer retrato que dele se possa fazer.Basta recordar alguns dos seus mais sofisticados retratos cinematográficos e a repetição desse pormenor insólito, verdadeiro anticlímax, que é o desconcertante simbolismo dos respetivos títulos. Assim, em 2005, Martin Scorsese fez No Direction Home, (qualquer coisa como: “Sem possibilidade de voltar a casa”), citando a canção Like a Rolling Stone. Dois anos mais tarde, I’m Not There (“Não estou aí”), realizado por Todd Haynes, apropriava-se de uma expressão da canção homónima gravada em 1967, editada pela primeira vez em 2007 na banda sonora do filme (incluída em 2014 em The Basement Tapes Complete, volume 11 da chamada Bootleg Series). Enfim, também em 2007, The Other Side of the Mirror (“O outro lado do espelho”), de Murray Lerner, fez a recolha documental das três passagens de Dylan pelo Festival de Newport (1963, 1964, 1965), especialmente importantes na estrutura narrativa de A Complete Unknown.“Como uma pedra rolante”Quem é, então, o “completo desconhecido” mencionado no título do filme de Mangold? Pois bem, dir-se-ia que é alguém que pertence à mesma história da figura errante e errática presente no título de Scorsese, sem esquecer a proximidade com a respiração do clássico “blues” de Muddy Waters e da sua “pedra rolante” (“rollin’ stone”).Daí a pergunta nuclear de Like a Rolling Stone, a melhor canção jamais composta por Dylan (segundo a opinião do próprio): “Qual é a sensação / De estar por conta própria, sem poder regressar a casa / Como um completo desconhecido, como uma pedra rolante?” E porque a tradução é pobre, limitando-se a “ilustrar” a riqueza da poesia, eis a melodia e o ritmo do original: How does it feel / To be on your own, with no direction home / Like a complete unknown, like a rolling stone?Numa primeira aproximação, demasiado esquemática, talvez inevitável, podemos resumir o trabalho de Mangold como um inventário de momentos emblemáticos da carreira de Dylan. A começar, claro, pelos já referidos Festivais de Newport, incluindo o “escândalo” da edição de 1965, abalando as estruturas artísticas e mitológicas da música folk (americana e não só...), quando Dylan decide integrar guitarras elétricas nas suas canções. Ou como ele diz no filme de Mangold, não era possível continuar a cantar Blowin’ in the Wind para sempre.Daí a sugestiva, também inevitável, comparação com o clássico Dont Look Back, documentário de D. A. Pennebaker pontuado por essas primeiras experiências elétricas numa breve digressão britânica, também em 1965, poucas semanas antes de Newport. Dont Look Back só seria lançado nos circuitos comerciais em 1967, entre nós com um título que, agora, parece ironicamente adequado ao Dylan composto por Chalamet: Eu Sou Bob Dylan.Tal como Gustave Flaubert a propósito da sua lendária heroína feminina (“Madame Bovary Sou Eu”), Chalamet poderá reivindicar uma “coincidência” semelhante em relação à sua personagem, quanto mais não seja porque a sua transfiguração é tanto mais impressionante quanto, qual “pedra rolante”, o Dylan de A Complete Unknown é, em tudo e por tudo, um inimigo tenaz de qualquer cliché..Nesta perspetiva, o argumento do filme de Mangold, por ele escrito em conjunto com Jay Cocks - tendo como base o livro de 2015, Dylan Goes Electric!, de Elijah Wald -, consegue uma proeza rara neste modelo de “biografias”: as muitas canções que Dylan/Chalamet vai interpretando, incluindo as que partilha com Joan Baez (Monica Barbaro), quase sempre em versão integral, nunca transformam o filme numa banal acumulação de hits. Pelo contrário (aliás, de modo bem diferente), aquilo que nos é dado ver e ouvir possui a dimensão de uma verdadeira narrativa romanesca.Atenção: romanesca, não romântica, ainda menos lírica, por mais que a poesia de Dylan possa, em alguns momentos, aproximar-se de tais rótulos. A Complete Unknown remete-nos para uma contradição em movimento: por um lado, naquela época que desemboca no sexto álbum de estúdio de Dylan - Highway 61 Revisited (1965), que abre com Like a Rolling Stone -, Dylan emerge como o “deus” da música popular que vai ser abandonado por muitos pelo facto de não se submeter à mera reprodução do seu próprio mito; por outro lado, as canções surgem como elementos orgânicos do cruzamento de várias histórias de amor, envolvendo sobretudo Joan Baez e Sylvie Russo (Elle Fanning), esta uma derivação ficcional de Suze Rotolo, namorada de Dylan entre 1961 e 1964..Os anos da contraculturaA Complete Unknown vai pontuando as atribulações pessoais e musicais de Dylan com breves memórias das tragédias políticas que marcaram a ferro e fogo os anos 60, quase sempre recorrendo a imagens vistas na televisão - por exemplo, o assassinato de John F. Kennedy é citado através da notícia lida por Walter Kronkite.É verdade que poderemos questionar algum esquematismo nas formas de inserção de tais imagens, mas não é menos verdade que o filme a elas recorre para que não esqueçamos a densidade factual e emocional de um tempo marcado pela energia utópica (e também pelos seus limites) da primeira metade daquela década.Daí a beleza contida da evocação desses anos vividos por Dylan, os seus pares e muitos dos seus ouvintes, como a época de uma genuína contracultura. Com uma nuance que importa ter em conta, sobretudo para evitarmos o determinismo político e simbólico das narrativas de raiz televisiva que circulam pelo espaço mediático. A saber: o aparecimento do termo “contracultura” é mesmo posterior aos factos evocados em A Complete Unknown - foi cunhado em 1969 pelo investigador, professor e romancista Theodore Roszak em The Making of a Counter Culture, livro de admirável subtileza cultural e política, e também de perturbante atualidade, editado entre nós antes do 25 de Abril, em 1971, com o título Para uma Contracultura (Publicações Dom Quixote)..No limite político e, sobretudo, poético desta viagem, o que está em jogo é a possibilidade de retorno a um classicismo visceral que não decorre de qualquer nostalgia paternalista, ainda menos desse culto do pitoresco que passou a marcar muitas linguagens ditas de “reconstituição” histórica.Nomeado para oito Óscares (incluindo os de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Ator), A Complete Unknown possui a força de um objeto fiel a um património narrativo made in USA - musical, cinematográfico e literário - que continua a desafiar as nossas certezas e tudo aquilo que conhecemos. Ou julgamos conhecer. .ÓSCARES. Hollywood celebra o seu internacionalismo