Belmond Cipriani. O hotel mais seleto e luxuoso de Veneza, fica numa ilha e tudo brilha numa sinfonia de requinte que faz rima com os mármores a brilhar das paredes forradas com molduras de visitantes famosos. Junto ao jardim, Timothée Chalamet, com t-shirt vintage de David Bowie e umas botas bicudas com aspeto de estarem a ser estreados, está com um ar casual à espera de alguns jornalistas que tinham acabado de ver Ossos e Tudo, de Luca Guadagnino, no Festival de Veneza, filme de canibais que iria vencer o prémio de melhor de realização..A simpatia de Chalamet contrasta com a timidez da sua colega, Taylor Russell, a jovem canibal protagonista, atriz muito jovem que está naquele degrau final para se tornar uma "star", mesmo quando pensamos que nestes dias já não existem verdadeiras estrelas de cinema. Juntos nestas entrevistas com a imprensa fazem um contraste interessante, se calhar, nos antípodas do casal que vemos no filme: dois jovens com uma praga numa fuga sem fim nas estradas do interior americano nos anos de Reagan.."Para mim, o tema do canibalismo representa aquilo que herdamos dos nossos pais e sob o qual nos tornamos humanos, sejam os vícios, sejam as virtudes. No meu caso, tive uma infância maravilhosa e fui muito bem criado. Mas a verdade é que todos carregamos algo do passado dos nossos pais. Também acho que Luca Guadagnino faz um filme sobre o vício e como isso nos faz pensar que somos porcos e que carregamos uma praga. Sem querer dizer muito, o romance e o amor podem ajudar-nos a confirmar a nossa humanidade. Tem a ver com o lado lúcido do olhar romântico do outro", começa por dizer o ator que é o ídolo de uma nova geração, aqui filmado com uma sombra queer que remete para o fascínio à James Dean. "Quando li o guião pela primeira vez não fiquei com medo que as partes do sangue e de terror pudessem não resultar - sabia que estava em boas mãos com o Luca. Como ator apenas me preocupei com os detalhes mais emocionais e onde aquela história de amor me poderia levar. E estar ao lado de alguns dos melhores atores do mundo como o Mark Rylance ou a Chloe Sevigny também me deixou descansado. Enfim, o Luca deu-me uma carreira, confio tanto nele. Sem Chama-me pelo Teu Nome não estaria aqui. O seu trabalho é tão controlado, da mesma maneira que Denis Villeneuve nos filmes Dune. Aliás, não há grande diferença, mesmo se Dune se passe no futuro. Mas Ossos e Tudo foi como que um teste. Um teste para voltar às minhas origens, sobretudo depois de filmar coisas tão grandes como Dune e o novo Wonka", prossegue..Sobre os elementos musicais do filme, onde predomina a escolha de uma certa vibe rock muito particular dos anos 1980 e toda a banda-sonora de Atticus Ross e Trent Reznor, o prodígio de Hollywood tem momentos muito especiais como os Kiss: "Sim, tive de ouvir muito Kiss, que são fenomenais! Mas também investiguei Motley Crew, Metallica e esse tipo de bandas. Não cresci com esse som...". "Eu não tive de ouvir Kiss, mas talvez procure as suas canções. Para este filme criei para mim uma playlist especial com alguns temas desta época. Temas que nem sabia que eram dos anos 80! Criei uma playlist que tem a ver com a personagem", retorque Taylor Russell, atriz que esteve também no palmarés de Veneza com o prémio de melhor atriz do futuro - prémio Marcello Mastroianni..Tal como a personagem que interpreta, Taylor diz também que se sente uma marginal: "Isso de não pertencermos a um grupo específico acontece com muitos de nós, mesmo não querendo falar em nome de outros. E aos 18 anos é pior, mas não sei se muda esse sentimento de não pertença à medida que for crescendo...Espero que com a idade tudo fique mais fácil. Para já, tenho a ideia de que tudo é doloroso, estou na fase de experimentar emoções pela primeira vez, como o amor. Fico feliz por este filme abordar essas questões. Espero que as pessoas se possam rever em Ossos e Tudo". Chalamet olha com admiração para a sua jovem colega, alguém cuja interpretação em Waves, de Trey Edward Shults, valeu-lhe toda esta atenção da indústria e imprensa. Para o ator, o filme é sobretudo uma história de ternura e amor: "Quis muito fazer este filme para explorar uma nova forma de amor, o amor de alguém que é marginalizado e luta para ser visto e reconhecido, tal como a minha personagem de Chama-me pelo Teu Nome, mas aqui as questões económicas e a desvantagem social impõem-se...Desta vez estou também com 25 anos, não com 20. Foi diferente de Chama-me pelo Teu Nome. Quando o Luca me convidou pareceu-me que o sentido da coisa era perfeito e ainda para mais estar ao lado da Taylor, o filme é dela! Que prazer vê-la numa viagem semelhante àquela que o meu personagem fez em Chama-me pelo Teu Nome!". Antes de o seu publicista encerrar a conversa, tem ainda vontade de frisar um ponto: "A Taylor disse que era uma marginal, mas todos os artistas o são. Não quero estar a falar de política, mas esses novos movimentos que põem as pessoas todas numa caixa deixam-me assustado. Parece que estamos a andar para trás...E estamos. Por isso mesmo, são muitos os que enfatizam o lugar do artista na sociedade, mas não quero fazer-me passar por pretensioso por estar a dizer isto... É preciso um foco sob os artistas, um espelho!.dnot@dn.pt