Pode descrever um pouco de como trabalha? Como começa a compor e como surge um álbum como The Bird of a Thousand Voices [editado em 2024]?Estou sempre a compor, independentemente de ter um projeto ou não. As ideias surgem-me quer esteja ao piano, a caminhar ou a viajar. Gravo-me constantemente assim que tenha uma ideia. Tenho por isso um monte de gravações, sejam áudios no meu telemóvel ou cassetes. Há uns anos, costumava gravar em fita, então tenho muitas cassetes onde estou simplesmente a compor uma canção ou uma parte. Quando tenho algo concreto e decido que quero partir para um novo projeto, começo a pensar em que moldes será. É um trio? É um quarteto? Que tipo de formato é? Mas antes disso, questiono-me também sobre o que é mais premente de apresentar enquanto artista no momento. Quem sou eu, agora, como artista? O que tenho a dizer? Essas são as primeiras perguntas que faço e, assim, o formato começa a surgir, seja ele qual for. No caso de The Bird of a Thousand Voices, inspirei-me num conto arménio muito antigo, chamado Hazaran Blbul, que significa precisamente o nome do disco, O Pássaro de Mil Vozes. Em 2019, vivia em Los Angeles, tropecei neste conto num livro e chocou-me completamente. É uma história tão épica e era apenas uma das mais de 30 versões que os etnógrafos conseguiram catalogar ao longo dos séculos. É tão esplêndida que me inspirou para criar música para o conto, que não é uma odisseia, mas sim algo quase bíblico ou retirado de um livro religioso, é super profundo.A sua sonoridade é caracterizada por um vasto leque de influências, desde o metal à musica tradicional da Arménia, com instrumentos como o duduk, também escalas mais orientais ou sintetizadores. Como surge a decisão de incorporar esta instrumentação e todas estas influências? É algo que faz de forma consciente?Só utilizei instrumentos tradicionais da Arménia em algumas circunstâncias. Adoro estes instrumentos, mas prefiro usar a ‘armeniedade’ da música sem eles e através do piano ou com arranjos. Ou seja, sem ser algo óbvio. Em cada cultura, a coisa mais difícil de fazer são arranjos com música tradicional. Faz-nos questionar de imediato quem somos enquanto músicos, porque a música tradicional, em si, não precisa de mais nada. Tudo acaba por vir das suas raízes. E tem de se construir tudo em cima disso. Caso contrário, acaba por ser bastante clichê, algo que acontece muito. É uma grande viagem até chegar a esse ponto e aprofundei-me mais no estudo da música tradicional. Então, tornou-se, de forma natural, parte do meu vocabulário musical. Mas não penso nisso, hoje em dia. A ideia é: quando improviso, estou a improvisar melodias. É assim que quero e gosto de pensar..A juntar a isso, toca com vários músicos não associados ao jazz, como o baterista Matt Garstka, que faz parte da sua banda e é membro do grupo Animals as Leaders. Como faz essa escolha?Tudo depende daquilo que a música pede. Neste caso concreto, temos um vocabulário musical em comum, toda aquela vertente do metal progressivo. Há muitos músicos de jazz que ouvem bandas como os Meshuggah. E vice-versa. Os próprios membros dos Meshuggah, tal como o Matt Garstka, estudaram jazz, mas não tocam esse tipo de música. Então, em vez de escolher um baterista de jazz e forçá-lo a soar como um de metal, é melhor pegar em alguém do metal mas que tenha uma sensibilidade mais jazz, como o Matt. Não há muitos bateristas assim. Há muitos músicos que o conseguem fazer, mas não da forma certa. Além disso, uma banda é como uma pequena família. Tem de haver alguma ligação entre nós. E quando vejo alguém como o Matt, penso: “Temos de colaborar.”Abordou o tópico do metal progressivo. Sei que é um grande fã dos Meshuggah e de bandas como os Tool, ambas fora do universo jazz, mas com um som muito complexo. O que o atraiu nestas bandas?Em termos rítmicos, o que fazem é absolutamente louco. É música muito complexa e, ao mesmo tempo, muito groovy. Mesmo que não se perceba exatamente o que está a acontecer, o groove é algo que realmente capta a atenção. Sempre fui fascinado por ritmos. Quando tinha 17 anos, conheci o Ari Hoening, um baterista de Nova Iorque, absolutamente incrível e com quem fiz o meu primeiro álbum [World Passion, de 2006] chamado Ari Hoenig. Na altura, perguntei-lhe o que ouvia enquanto gravava um disco, e ele recomendou-me os Meshuggah. Foi assim que os descobri. Tocar com o Ari Hoenig, que tem um nível diferente de compreensão musical e consegue executar todo o pensamento polirrítmico do jazz, foi muito especial e algo único. Tocar com o Ari e ouvir bandas como os Meshuggah, bem como música folk de todo o mundo, incluindo música clássica indiana e música arménia (que têm muitos ritmos diferentes), acabou por me fazer interessar muito por ritmos complexos..Nasceu e cresceu na Arménia, correto?Sim.Enquanto criança, como foi crescer e testemunhar a queda do regime comunista e as repercussões que teve?Quando a União Soviética terminou [em 1991], eu tinha quatro anos. Não me lembro desse momento, mas tenho presentes as consequências disso.Como é que isso o influenciou enquanto pessoa e enquanto músico?Crescer na Arménia moldou muito as minhas experiências de infância. Tem um impacto muito grande em quem somos enquanto adultos. Lembro-me de ter uma excelente infância, mas quando olho em retrospetiva e analiso de forma racional aquilo por que os meus pais passaram e como viveram, o cenário é totalmente apocalíptico. Não havia eletricidade, o meu pai acordava às 5h00 para ir para a fila e tentar ter um pouco de pão, que nem se sabe do que era feito. Havia escassez de alimentos. Era muito difícil arranjar carvão ou madeira para aquecer a casa, por exemplo. Depois, em 1988 começou a guerra com o Azerbaijão [o primeiro conflito no Nagorno-Karabakh]. Nesse ano, houve também um sismo na minha cidade-natal [Gyumri]. Aconteceram imensas coisas, mas lembro-me de ter uma infância bonita, com bons amigos meus, bem como dos meus pais, do meu tio e da minha mãe. Havia, na altura, uma comunidade muito próxima que se apoiava, algo que não encontro mais. Infelizmente, as pessoas unem-se quando existem situações difíceis. Mas lembro-me de crescer numa espécie de mundo que tinha algo de mítico, fosse por alguma situação em específico que acontecia na altura ou pela minha mãe a ler-me histórias épicas e antigas, à luz das velas. Lembro-me disso, da escola, do nosso jardim, dos sons. Não tive, de todo, uma infância difícil..A Arménia é um país pequeno, mas tem uma história muito rica e vasta. Sente que tem um papel importante na divulgação da cultura do seu país?Como a Arménia é pequena, as pessoas identificam logo qualquer artista que surja e consiga sair do país. Ainda que haja uma tradição de artistas arménios pelo mundo e haja alguns a viver no estrangeiro. Claro que reconheço que represento o meu país, quer queira quer não. É uma responsabilidade.O que o tem inspirado, ultimamente?Tudo, no fundo. Quanto mais exploro, seja música ou outro tipo de arte, de qualquer área, na verdade. Estudar culturas e as suas artes tradicionais, por exemplo. Ou ainda a geometria, bem como, definitivamente, o cinema, a fotografia, a história. Tudo. Mas também observar a interação e a natureza humana, que é o mais importante..Mesmo para terminar, falemos sobre a sua relação com Portugal. Não é a primeira vez que atua no nosso país. Que memórias tem destas atuações e o que representa Portugal para si?Adoro estar aqui. Sempre que estou cá há uma receção muito calorosa. Quando estou no palco sinto mesmo o calor da audiência. Mas em todos os outros níveis, em termos humanos, sinto que há uma boa conexão sempre que estou cá. Não sei se tem só a ver com a música, mas também com um nível mais humano.