Talvez a América nunca tenha sido grande." As palavras de Barry Jenkins numa entrevista recente concedida ao The Guardian apontam para o vácuo do famoso slogan da campanha de Donald Trump, "Make America Great Again"..O realizador de Moonlight diz que foi em resposta a essa falta de consciência que decidiu avançar para uma adaptação de The Underground Railroad. Era "absolutamente a coisa certa a fazer." E aí está: dez episódios, com pouco mais de uma hora cada, que contam a história de Cora (Thuso Mbedu), escrava nascida numa plantação da Geórgia que, em meados do século XIX, se põe em fuga com outro escravo, Caeser (Aaron Pierre). Para eles, a luz ao fundo do túnel surge sob a forma desse "Underground Railroad" do título, um sistema ferroviário subterrâneo que promete levá-los para longe do pesadelo em carne viva que são os dias naquela plantação de algodão..Adaptando o romance homónimo de Colson Whitehead, publicado em 2016 e vencedor do Pulitzer, a minissérie parte de um princípio de mobilidade clandestina para fazer o retrato da América antes da guerra civil. De facto, à época existia uma rede de transporte e abrigo criada pelos abolicionistas com o objetivo de ajudar os escravos em fuga. O próprio realizador, enquanto criança, ouviu falar dessa rede na escola. Mas o que aqui vemos é mais do que um circuito sussurrado entre pessoas que zelavam pela liberdade dos negros..A imaginação literária de Colson deu-lhe o formato concreto de uma ferrovia debaixo da terra que remete para um certo espírito de aventura - não é por acaso que as personagens foragidas leem As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift - e para um realismo mágico muito bem aproveitado pela lente de Jenkins..CitaçãocitacaoThe Underground Railroad não é o tipo de série para se ver de uma assentada. É preciso relaxar no fim de cada embate virtuoso.. Porém, antes de se partir para a odisseia, há um primeiro capítulo pesado. Jenkins quer que o terror nos acompanhe no caminho, mesmo quando já não estivermos diante de quadros de violência e trauma. Apresenta-os logo, com uma serena brutalidade, para que se perceba porque é que Caeser diz que "não é suposto estar ali", insistindo em deixar para trás o passado para tentar procurar um futuro. É, de resto, um episódio que vai estar presente na memória dos outros nove. Tal como um órfão de uma narrativa de Charles Dickens, a escrava Cora segue por diferentes estados sulistas, começando numa comunidade próspera da Carolina do Sul que recebe os refugiados negros com um programa completo de educação, saúde e trabalho, enquanto desenvolve uma agenda obscura com caução científica e sob a aparência de bem-estar social... Próximas paragens: Carolina do Norte e Tennessee. No encalço da jovem fugitiva anda um implacável caçador de escravos (Joel Edgerton) e o seu assistente (Chase Dillon, que rouba qualquer cena com facilidade), um menino negro de 11 anos vestido como um homem branco. Quando dizemos que Cora se parece com uma figura dickensiana, podemos acrescentar outra perspetiva à condição de órfã. Na verdade, o sentido da sua jornada é uma tentativa de perceber os sacrifícios que a mãe fez por ela. E esse diálogo interior, que opera na medida de uma linguagem cinematográfica, é algo que transforma uma viagem individual no eco de uma história coletiva. Conforme se mantém em fuga, a liberdade cresce de dentro para fora. Há esperança e um pouco de amor. Para quem conhece a assinatura de Barry Jenkins - que depois do oscarizado Moonlight realizou a adaptação de um romance de James Baldwin, Se Esta Rua Falasse - saberá de onde vem o fôlego e a cadência de cinema desta minissérie. Os três primeiros episódios dão mesmo a sensação de que se está a formar uma espécie de antologia, embora mais para a frente se imponha o arco do épico sulista. E, no entanto, o retrato da escravatura submete-se a uma sensibilidade que mina por dentro as convenções do drama de época. Há um lirismo que se introduz pacientemente na costura narrativa e nos mantém presos ao estilo de Jenkins: a forma como "fotografa" os corpos (em particular o de Cora) na atitude e reação à ameaça envolvente, o modo como os rostos se voltam para a câmara e as emoções trabalham a um nível subterrâneo, numa linha férrea mental, misturando sonho e memória sob a vigilância musical da exímia banda sonora de Nicholas Brittel. Apesar de a totalidade dos episódios estar disponível no serviço de streaming Amazon Prime Video, The Underground Railroad não é o tipo de série para se ver de uma assentada. É preciso relaxar no fim de cada embate virtuoso, remoer a beleza do olhar de Jenkins e, sobretudo, a cerrada angústia histórica.