Hoa Xuande e Robert Downey Jr., uma dupla espetacular em si mesma.
Hoa Xuande e Robert Downey Jr., uma dupla espetacular em si mesma.Direitos reservados

The Sympathizer: a arte de estar entre duas culturas

A adaptação do romance homónimo de Viet Thanh Nguyen chega esta segunda-feira à HBO Max. Um relato vivo, em sete episódios, de um espião que, depois da Guerra do Vietname, se manteve em missão secreta a partir de Los Angeles. Robert Downey Jr. abrilhanta o elenco e Hoa Xuande é a jovem revelação.
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“Sou um espião, um infiltrado, um malsim, um homem de duas faces. Não será porventura uma surpresa que seja também um homem de duas mentes.” As primeiras linhas de O Simpatizante, livro de Viet Thanh Nguyen (editado entre nós pela Elsinore, com tradução de Maria do Carmo Figueira), estabelecem o ponto intercultural em que se situa esta história vencedora do Pulitzer. História agora convertida numa minissérie de sete episódios que, entre o Vietname do Sul e Los Angeles, reflete a ginástica de espírito de um homem obrigado a dar continuidade à sua missão de agente secreto, em terras estadunidenses, após a queda de Saigão, evento que ditou o fim da guerra em abril de 1975, “um mês de importância capital para toda a gente da nossa pequena parte do mundo e de nenhuma para a maioria das pessoas no resto do mundo”, como se lê no romance do autor americano nascido no Vietname.

Com o título mantido no original, The Sympathizer, a série que amanhã se estreia na HBO Max firma-se inteiramente nessa condição de um protagonista dividido, ou multifacetado. Um indivíduo sem nome, conhecido apenas como Capitão, que carrega a dualidade nos genes, enquanto filho de uma vietnamita e de um colono francês, vivendo-a através de um par de línguas faladas impecavelmente (o inglês e o vietnamita) e de dois amigos que representam lados opostos (o que odeia o vietcongue e o comunista por trás da sua atividade secreta).

Em suma, um narrador que, em estilo satírico, contém a riqueza de visões necessária para derramar na página o relato mais fidedigno, e neutro, da realidade: assim acontece tanto na série como no livro, com o Capitão, prisioneiro político num Campo de Reeducação vietnamita nos anos posteriores à guerra, a escrever a sua confissão... sem dispensar os condimentos ficcionais.

Como trazer para o ecrã este caráter duplo? A pergunta foi feita mais ou menos assim numa mesa-redonda virtual em que o DN participou, com Hoa Xuande, o jovem talento australiano de ascendência vietnamita que veste a pele do Capitão, e a bem conhecida Sandra Oh, que protagoniza a vertente amorosa do agente.

Sandra Oh dá mais do que um ar da sua graça. Hopper Stone/SMPSP | ©HBO

“Acho que essa é a natureza própria do espião”, começa por dizer Xuande. “Mas, acima de tudo, o Capitão é um ser humano e está a lutar pela sobrevivência”. Afinal, é preciso considerar o contexto histórico: “Tentei mergulhar fundo nos factos daquele período, perceber a psicologia e o que é que as pessoas pensavam, o seu ideário, procurando os relatos de quem se mexeu para sobreviver à guerra... Ao interpretar esta personagem, agarrei-me a tudo isso. E a verdade é que, quando falamos de sobrevivência em lugares diferentes - o Vietname do pós-guerra e Los Angeles -, as perspetivas mudam, tende-se a ‘simpatizar’ com o território inimigo.”

É complexo. Mas ao assistir a The Sympathizer compreende-se a afirmação de Xuande. Na série criada por Park Chan-wook (realizador dos três primeiros episódios) e Don McKellar testemunham-se diversas manifestações de simpatia pela América, por parte dos refugiados vietnamitas que, após a queda de Saigão, tentaram reinventar-se.

A única personagem que se afasta desse quadro é a figura acima do Capitão, simplesmente designado General, um veterano que não se conforma com a pátria perdida.

Postura em tudo contrastante com a da asiática interpretada por Sandra Oh, que espelha a atitude da assimilação... tanto na indústria de Hollywood como na narrativa em apreço: “Logo no início da minha carreira, fiz questão de ser identificada como atriz. Ponto final. Uma atriz com as mesmas oportunidades das outras atrizes brancas. Daí que tenha alguma piada, e seja provocador, quando conhecemos a Sofia Mori [personagem], ela ter aquela expressão imediata de ‘Eu sou americana’. Porque, no fundo, ela acaba por se deparar posteriormente com a pergunta: o que é isso de ser americana? Onde quero chegar é que a identidade étnica é tão importante como a referida identidade americana. No meu caso, e nesta fase mais avançada da carreira, preciso de assumir o todo da minha identidade, o todo do meu ‘Eu’ na personagem.” Em The Sympathizer, alguém que “começa a questionar se foi cúmplice com aquilo contra o qual sempre lutou. Isto é, o patriarcado e o racismo”.

As vozes vietnamitas

Este é um aspeto importante da série, enquanto projeto que vai além do ângulo americano, restituindo alguma dignidade histórica, sem precisar de recorrer aos métodos do dramalhão sisudo para se constituir um objeto sério. Com plena consciência disso, Hoa Xuande deixou-se tomar por uma iluminação pessoal.

“Os vietnamitas que trazem consigo o trauma desta guerra, nunca foram realmente ouvidos, e isso pesa-me. Aliás, quis que esse ónus estivesse na personagem. O que me fez valorizar a minha própria história como nunca antes...”, disse, com a hesitação da procura das palavras, que Sandra logo rematou: “É isso! É como se se dissesse para dentro ‘esta é a história do meu povo e eu não a conhecia’. Para mim, estar no set com um elenco que é maioritariamente composto por vietnamitas - vietnamitas australianos, canadianos, americanos, ou mesmo só do Vietname - foi como uma experiência total de ouvir as suas histórias em primeira mão e ver pessoas, de diferentes gerações, em contacto com uma dor tremenda pela primeira vez. Isso abriu-me os olhos... Há aqui muitas histórias e sofrimento que precisam de ser abordados delicadamente por quem de direito.”

Seja como for, as virtudes de The Sympathizer não se medem só pelas particularidades do seu elenco, nem por qualquer sentido de justiça representativa - essa é matéria que vem do romance, e à qual as imagens conferem uma vibração feliz. No departamento da realização, porém, talvez se possa apontar um desnível entre os episódios iniciais, com assinatura de Park Chan-wook, e os restantes (o quarto é realizado por Fernando Meirelles e os três últimos por Marc Munden).

Se pela mão do coreano que nos deu Oldboy - Velho Amigo tudo é imageticamente intenso e tónico, com uma câmara que incorpora a inteligência do drama thrillesco mesclado de sátira, nos episódios que se seguem a temperatura é mantida, sobretudo, através da engrenagem já bem oleada dos atores, que assimilaram o toque negro do coreano.

Como é estar às ordens de um cineasta de culto? “No início da rodagem, eu estava simplesmente nervoso e inseguro”, conta Xuande, “mas no comando calmo de Park Chan-wook - e ele sabe exatamente o que quer, é um realizador muito específico e detalhado - ganha-se confiança. Para o fim, já só me enviava sinais... O que é engraçado, tendo em conta que ele fala coreano no set, com tradutor, mas às tantas eu já só estava atento à sua linguagem corporal.”

A segunda vida de Robert Downey Jr.

Para além de Park Chan-wook, o principal chamariz de The Sympathizer será mesmo Robert Downey Jr., que depois do Óscar recente pelo papel secundário em Oppenheimer  parece estar a renascer da fase em que as suas habilidades performativas andaram praticamente ocultas debaixo do fato do Homem de Ferro...

Algo aqui restabelecido da forma mais notória possível. A saber, Downey Jr. não interpreta uma, mas sim quatro (!) personagens, sob uma variedade cómica de disfarces: é um funcionário da CIA, que acaba por orientar o Capitão nas lides dos serviços de informação; é o professor que se encarregou dos seus estudos em Los Angeles, cultivando a filosofia oriental; é um congressista do sul da Califórnia, que anda a aproveitar-se dos refugiados vietnamitas; e é um realizador que vai oferecer ao protagonista um trabalho como consultor numa produção a meio caminho entre Apocalypse Now  e Tempestade Tropical...

Hoa Xuande/o Capitão e os seus amigos no Vietname. Hopper Stone/SMPSP | ©HBO

Sobre esta dupla formada pelo Capitão e qualquer uma das personagens de Downey Jr., o DN perguntou a Xuande sobre a origem da química entre os dois, e a resposta veio com um largo sorriso por parte de quem ainda está a entrar na máquina da indústria: “Não poderia pedir uma melhor experiência em termos de primeira rodagem de uma grande produção. Ter alguém assim, reconhecido, famoso, alguém que veneras porque cresces a vê-lo nos filmes, na televisão, e de repente estares a trabalhar com ele... Enfim, o Robert é tão humilde, tão terra a terra, espirituoso e divertido, que desde o início definiu esse tom no nosso trabalho conjunto. Do género, pôs-me a mão no ombro e disse: ‘Mano, vamos dar cabo disto juntos!’ Isso fez-me sentir à vontade para brincar e tirar gozo das cenas. Durante seis meses foi assim, tudo orgânico e natural, o que me aliviou imenso o nervosismo em relação à rodagem.”

Ora bem: não há sombra de nervos quando os vemos interagir

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