Quando os médicos fazem o juramento de Hipócrates, na sua formatura, comprometem-se, logicamente, com a defesa dos valores da boa prática clínica e uma ética profissional indissociável da dedicação plena ao doente. Logicamente, dizíamos, mas nem sempre as séries hospitalares corresponderam a essa leitura tout court da realidade. O que é o Dr. House senão uma saga em torno de um Sherlock Holmes do diagnóstico, que levou aos píncaros o carisma de Hugh Laurie? O que é a Anatomia de Grey senão um “corpo” de relações interpessoais ambientado num departamento de cirurgia? Ou o que é The Good Doctor senão um olhar sobre os desafios de um jovem médico com autismo? Se cada uma destas séries honra o juramento de Hipócrates, a verdade é que nenhuma observa a experiência médica com tanto foco humanista como The Pitt, o pulsante e eficiente drama hospitalar em estreia na Max, com dois episódios já disponíveis. Enfim, dizer que três das mais famosas séries médicas são humanamente suplantadas por uma nova produção poderá parecer irrefletido e pouco cuidadoso, por isso esclareça-se: não está em causa, de forma alguma, o mérito comprovado desses clássicos modernos. Acontece que The Pitt tem como característica específica a vontade de observar situações de ambulatório menos do ponto de vista de um certo “génio” profissional do que enquanto experiências humanas que desenham um mapa de angústias (com pitadas de humor aqui e ali) bastante verosímeis. De resto, parte da estaleca que se sente nesta ficção de 15 episódios vem da competência do seu criador, R. Scott Gemmill, que produziu outro ilustre e histórico drama médico chamado Serviço de Urgência (1994-2009). Por essa mesma razão – e também pelo facto de a figura principal de The Pitt ser Noah Wyle, ator literalmente treinado pelo Serviço de Urgência (ER) – a série surgiu conotada com a falsa ideia de se tratar de um reboot. O que temos, porém, é outra estrutura com identidade própria: cada episódio equivale a uma hora de um turno único, significando isso que uma temporada inteira retrata um dia na vida daqueles profissionais, em “tempo real”. A marca distinta de The Pitt começa por ser precisamente a rapidez com que nos suga para dentro do serviço de urgência de um hospital de Pittsburgh, onde tudo se passa, habituando-nos à luz intensa e aos gestos enérgicos de socorrismo (as poucas e breves cenas no exterior são dignas de ferir a vista...). Estamos então num departamento chefiado pelo Dr. Michael Robinavitch (Wyle), Robby para os amigos, que ao longo das 15 horas seguintes monitorizará todo o género de casos, desde uma mulher com uma intervenção plástica nas nádegas, que deu para o torto, à tragédia de um jovem em morte cerebral, cujos pais não conseguem processar a decisão de desligar a máquina. Sem choques tonais, e sem aquela bengala da música que “ajuda” a adensar o drama, The Pitt procura fazer da respiração do momento – na sua aflição entre a vida e a morte, assim como nos seus silêncios dolorosos – a gramática televisiva mais envolvente. Tubo de ensaio americano Em qualquer sala que entre, Robby/Wyle traz a lucidez, o bom senso, a honestidade e a observação construtiva que faz andar a carruagem do turno. Mas, curiosamente, esta não será uma série devota do carisma do seu protagonista; é antes a postura dele que reage com a arte médica possível (lá está Hipócrates) às dificuldades imediatas que se misturam com stress, cansaço e fantasmas da covid, realçando a dimensão psicológica, e por vezes social, de cada corpo enfermo na maca. E não está sozinho: toda uma equipa com desempenho a duzentos por cento, que inclui estagiários a quem se dá o devido tempo de antena, contribui para a sinfonia humana e ritmo vertiginoso de um turno infernal, modelado por interações delicadas. Aliás, nem a crise na sala de espera escapa a este ângulo. Por aí também se vislumbra uma certa face da América. Quer dizer, The Pitt toca em pontos tão reconhecíveis como uma mãe preocupada com o filho potencial homicida em massa (que por isso provocou uma ida às urgências), ou o cidadão violento que, farto de esperar, se acha no direito de ser atendido antes das pessoas em situação mais grave apenas porque paga os seus impostos... Não há cá grandes mistérios da medicina e quejandos. Este é um universo de prática quotidiana, jargão funcional e aprendizagem contínua, com percalços, sustos, lágrimas, sorrisos, sofrimento escondido como uma gravidez debaixo da camisa, e até ratos a saltarem poeticamente do interior do casaco de um sem-abrigo. Aqui, ao contrário do que diz o inestimável Dr. House, a humanidade não está “sobrestimada”.