The Great: reinar sem moderação
Se te vestires bem, ninguém nota o que fazes, apenas o que vestes." Esta máxima lançada para o ar algures a meio do segundo episódio da nova temporada de The Great serve para muita coisa. Mas sobretudo é um bom resumo daquilo que a série criada por Tony McNamara (o argumentista de A Favorita) coloca em evidência. A saber, a corte russa do século XVIII está-se nas tintas para os grandes planos da sua imperatriz, embora uns trapinhos vistosos possam mudar perceções num estalar de dedos. Caso para dizer que há mais potencial nos tecidos do que o mero jogo de aparências faz crer. Senão, veja-se o vestido arrojado que Catarina (Elle Fanning) usa no dia da sua coroação e que desperta o interesse das meninas da corte, resultando num súbito recrutamento de alunas para o ensino feminino promovido pela monarca no interior do palácio. Lição aprendida: saber vestir é uma forma de apontar para o futuro... ainda que não faça milagres num país que resiste à figura de uma mulher como líder da nação.
Depois de uma primeira temporada em que a jovem e idealista Catarina, recém-chegada à Rússia para o casamento arranjado com o imperador Pedro (Nicholas Hoult), se deparava com um país culturalmente obsoleto e de hábitos perversos, o segundo capítulo de The Great (HBO) retoma a espuma da loucura deixada pelo golpe que ela maquinou contra o marido, explorando ao longo de dez episódios os desafios da sua subida ao trono, com um herdeiro no ventre. Enfim, há aqui um importante detalhe anti-histórico: a vida de Pedro é poupada (quando, na realidade, terá sido assassinado dias depois do golpe de estado), e ele é mantido numa espécie de prisão domiciliária. Nada que choque quem acompanhou The Great desde o início, pois saberá que a liberdade de McNamara com os factos faz parte da graça da série, ou não se designasse "uma história ocasionalmente verdadeira".
O que se passa então? Catarina está determinada a implementar um conjunto de reformas que justifiquem o seu cognome: "a Grande". Um excesso de otimismo que passa, por exemplo, pela criação de uma Academia das Ciências, galerias de artes e escolas para raparigas (isto num país onde, por lei, se pode matar a pessoa que nos chamou "idiota"). É certo que pouco ou nada vai conseguir sobreviver ao plano das ideias, mas é justamente a alegria autoritária da imperatriz - com mais pontos em comum com o seu tosco marido do que seria de esperar - que interessa à narrativa de McNamara. Entenda-se: uma mulher com uma pronunciada barriga de grávida que percorre os corredores do palácio a meio da noite, toda desgrenhada e sob o efeito de estimulantes, para convocar reuniões de urgência com os seus conselheiros, ou que, na tentativa de conquistar a corte do marido, alinha num excêntrico baby shower...
The Great continua com o mesmo espírito delirante que lhe definiu o tom na primeira temporada. Algo a meio caminho entre a intriga palaciana desmiolada e o drama de cordel, que não deixa de puxar o fio às emoções só para nos lembrar que ali também está gente de carne e osso, apesar das perucas ridículas e dos diálogos com "fuck" a cada três frases. Mais curioso ainda é que a aventura de Catarina no trono, com Pedro por perto, vai aos poucos dando ares à chamada comédia do "recasamento", a certa altura com a visita da mãe da monarca, Joana (Gillian Anderson, convidada especial que ajuda a partir a louça), a dar um apontamento tão hilariante quanto pesado ao curso da história.
Mais do que nunca, Elle Fanning surge como a atriz solar que está acima de qualquer enredo tresloucado, chamando a si as atenções, desde logo com um guarda-roupa que renova o nosso espanto de episódio para episódio. A propósito, vale a pena lembrar que a exuberância é algo inerente à representação de Catarina, a Grande (1729-1796). Pegue-se no melhor exemplo do cinema: quando Josef von Sternberg realizou A Imperatriz Vermelha (1934), protagonizado por uma deslumbrante Marlene Dietrich, foi através de um robusto trabalho de estilização e pompa visual - já agora, desvalorizando também o rigor histórico - que chegou ao retrato dessa monarca que usurpou o poder. Na altura, a imprensa americana disse cobras e lagartos desta ousadia ("uma pura afetação idiota", etc.), e hoje é uma das obras-primas de Sternberg.
The Great não joga no campeonato das obras-primas. Não é por aí. Mas, tal como A Imperatriz Vermelha, alicerça-se na falta de moderação e no elogio da irreverência. Digamos que, no universo desta corte russa, aquilo que separa a brincadeira dos sentimentos verdadeiros perde-se no barulho das cores e no champanhe dos mexericos. Tanto que nem sequer existem vilões a sério. Quem precisa deles quando há crocodilos dentro do palácio e revoltas de nobres e criados? Modernizar a Rússia pode ser uma tarefa divertida, mesmo que ultra frustrante para a mulher no comando. Trajar bem já é uma grande vitória: como diz Catarina/Fanning, é possível ver o futuro através de um vestido.
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