The Beach Boys ou o verão sem fim.
The Beach Boys ou o verão sem fim.

The Beach Boys e Jim Henson: dois documentários, dois retratos americanos

Estreias do mês no Disney+, 'The Beach Boys' e 'Jim Henson: O Homem das Ideias' são olhares de “família” que nos aproximam das dores de percurso, por um lado, da banda californiana, por outro, do criador dos Marretas.
Publicado a
Atualizado a

Logo aos primeiros minutos de The Beach Boys ouve-se dizer que esta é “uma história de família”. E não há como escapar ao retrato fotográfico dos Wilson: Brian, o irmão mais velho, Carl, o mais novo, Dennis, o do meio, e o primo Mike Love foram os alicerces de uma banda americana cuja formação variou ao longo do tempo, com o amigo Al Jardine a integrá-la em 1961, enquanto membro fundador, e a sair no ano seguinte para terminar os estudos; substituiu-o na altura o vizinho David Marks, que não aguentou a pressão (era um adolescente), e Jardine acabou por voltar ao seu posto, em permanência... Porque é que estamos a falar disto? Porque as entradas e saídas, se quisermos, as metamorfoses humanas, são parte do ADN emocional dos Beach Boys, o grupo definidor do sonho californiano, que germinou de simples hábitos familiares, como a música que os pais punham a tocar em casa ou a prática dos três irmãos de cantar em coro no banco de trás do carro. Detalhes que nos chegam através do documentário de Frank Marshall e Thom Zimny, em estreia hoje no Disney+, intitulado apenas The Beach Boys. 

Partindo de entrevistas com os elementos vivos da banda – Brian Wilson, Mike Love, Al Jardine, David Marks e Bruce Johnston –, para além dos registos de arquivo dos restantes, entre outros depoimentos enriquecedores da cena musical, o que aqui se propõe é um traçar minucioso das fases de um projeto que se tornou um fenómeno instantâneo... até que aconteceu outro fenómeno chamado Beatles. 

Com efeito, os rapazes de Hawthorne, Califórnia, que levaram o surf e o verão a quem ouvia a sua música no início dos Anos 60, ficaram sempre associados a essas raízes de sonoridade estival, das quais se tentaram demarcar ao longo dos anos, numa competição constante coThe Beatles: as bandas estavam uma para a outra como um rival à altura, num regime de estímulo mútuo. 

E nessa tentativa de se superarem, empurrando para o fundo da gaveta os sucessos da adolescência, os Beach Boys não conseguiram manter-se na crista da onda o tempo todo. Ou melhor, só mais tarde perceberam que a sua identidade californiana vale ouro e une gerações. O que justificou o lançamento da coletânea Endless Summer, em 1974, e a recuperação tardia do estupendo álbum de estúdio Pet Sounds (1966), incompreendido à época e escolhido em 2006 pela Time com um dos 100 melhores álbuns de todos os tempos. 

Ao longo destas quase duas horas bem passadas, há muita honestidade em forma de desabafos sobre o pai dos manos Wilson, que tanto alavancou os Beach Boys como tentou interferir do ponto de vista criativo (as discussões com Brian fazem parte da mitologia da banda), e sobre a necessidade que alguns dos músicos sentiam de uma mudança de lógica que democratizasse o próprio processo de criação dos álbuns. 

Talvez o principal mérito de The Beach Boys esteja precisamente nessa questão democrática. No facto de não ser um filme que cai no erro de pôr um Beach Boy, Brian Wilson, acima dos outros – para isso, já houve Love & Mercy: A Força de um Génio (2014), o terno drama de Bill Pohlad, protagonizado por Paul Dano e John Cusack, e o documentário Brian Wilson: Long Promised Road (2021), de Brent Wilson, que entra no território íntimo desse irmão considerado o prodígio do grupo, desde logo, na sua postura de reclusão. Alguém que nunca se sentiu confortável em tournées, trocando-as por temporadas de gestação criativa, sentado horas ao piano a escrever melodias e a elaborar notas de introspeção, que não eram propriamente sonoridades relacionadas com os primórdios dos Beach Boys (embora geniais). Um verdadeiro animal de estúdio. 

Esta é, portanto, uma fotografia de grupo, que sabe encerrar a narrativa com a chave da amizade, reunindo os velhos companheiros de música à beira-mar para beber um copo..

O eterno The Muppet Man

A chegar também ao Disney+, no dia 31, depois da apresentação no Festival de Cannes, Jim Henson: O Homem das Ideias oferece outro retrato americano, e outro domínio criativo não menos digno da palavra “família”. A família tradicional, bem entendido, mas igualmente a família-equipa, as pessoas que trabalharam com Jim Henson (1936-1990), numa base mais ou menos regular, e conheceram de perto a agitação inventiva desta mente, num corpo tranquilo só mesmo na aparência. 

Sublinhar o facto de o criador dos Marretas e Rua Sésamo ter sido um “homem de ideias” torna-se, por si só, a ideia do documentário de Ron Howard, que procura não deixar escapar o mínimo indício da vida interior de Henson, para além do seu legado tangível. Isto enquanto os ponteiros do relógio, e de resto toda a problemática do tempo, criam um nervoso miudinho no espectador: refere-se muitas vezes que ele tinha urgência na concretização das suas múltiplas ideias, que nutria uma obsessão temporal (há uma curta-metragem fabulosa que o ilustra, Time Piece), revelando-se mais adiante a origem trágica desse sentimento. 

Como realizador que conhece bem os tempos da ficção, Howard não se inibe de “contar uma história” do princípio ao fim, recorrendo às habituais cabeças falantes para organizar o discurso sobre o homem Henson e a personalidade que construiu, de dentro para fora, ao longo da sua carreira. Um percurso profissional que, por exemplo, não conseguiu harmonizar com a vida familiar. Dos filhos aos colaboradores, com especial destaque para o grande companheiro criativo, Frank Oz, ouvimos os louvores mais sinceros, as descrições mais felizes de se estar num set com o marionetista e cineasta, e também as verdades que humanizam o artista. 

Fascinante mesmo é descobrir que o responsável pela bonecada que ajudou muita gente a crescer, e revolucionou o humor no cerne da cultura popular americana, não teve ele próprio uma paixão de infância por marionetas. Nem sabia bem o que isso era. O seu desejo voltou-se em primeiro lugar para a televisão, e só depois veio a desbunda de colocar bonecos a cantar e a dançar dentro do pequeno ecrã, para gáudio dos telespectadores. Nesse início de capítulo, a origem do Sapo Cocas é apenas uma das comoventes passagens deste ato absoluto de nostalgia, a que se juntam pequenas curiosidades sobre outras marionetas, como seja o modo com que Oz chegou à compreensão de Miss Piggy enquanto personagem. 

A arte das marionetas.

Há momentos em que Jim Henson: Idea Man supera o dispositivo comum. São aqueles em que ensaia a verve experimental do retratado, munindo-se de imagens e de uma energia próxima do que seria a “ternura anárquica” daquela cabeça. Como se não bastasse espreitar os bastidores da Rua Sésamo, e vê-lo partilhar a alegria performativa, ou as rodagens de O Cristal Encantado (1982) e Labirinto (1986), onde as suas inovações técnicas sobressaem a par da estranheza de todo o imaginário desses filmes. O filho Brian Henson, que com ele colaborou no Labirinto, diz a certa altura que, através dessa experiência, percebeu como era melhor trabalhar com Jim Henson do que ser seu descendente... O laboratório de ideias era a sua casa, definitivamente. 

À medida que avança, o documentário aperta a comoção, usando os Marretas, e não só, como mensageiros de uma inocência fundadora, daquela originalidade difícil de nomear, tão entranhada que está na nossa leitura do mundo. Não se vê, por isso, Jim Henson: O Homem das Ideias de ânimo leve. Mergulha-se na corrente afetiva, com a certeza de que Ron Howard – bem-sucedido nos seus documentários dos Beatles e Luciano Pavarotti – entende a linguagem da memória coletiva. 

Jim Henson, o criador.

Alargar a experiência

The Beach Boys surge poucas semanas depois de o Disney+ ter estreado o restauro do clássico Let it Be (1970), de Michael Lindsay-Hogg, documentário indissociável da história dos processos criativos dos Beatles. Aqui está uma possível sessão dupla de “novidades”. 

Já no caso de Jim Henson: O Homem das Ideias, é legítimo que abra o apetite a revisitações dos Marretas. No mesmo serviço de streaming, é só pesquisar: da série aos filmes e especiais, está lá tudo, para devorar divertida e nostalgicamente. 

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt