Solidão entre mãe e filha no Teatro da Trindade
Em Leenane, uma pequena vila da costa oeste da Irlanda, mãe e filha partilham uma pequena casa e, dentro dela, desesperanças e frustrações. A peça A Rainha da Beleza de Leenane, da autoria do inglês Martin McDonagh, mostra a relação doentia e de codependência entre Maureen, a filha de 40 anos, e a sua mãe, Mag, de 70, tocando em temas como a solidão e a saúde mental, entre outros.
O autor da peça, Martin McDonagh, para além de dramaturgo é também realizador de filmes como Em Bruges (2008), Três Cartazes à Beira da Estrada (2017) e o mais recente Os Espíritos de Inisherin, candidato aos Óscares em 2023. E é este último, pelo menos para quem o viu, que nos pode ajudar a imaginar a localização de Leenane, para lá do que não é mostrado em cena. As paisagens bucólicas, rurais, carregadas de verde típicas da Irlanda.
Contudo, aquilo que se passa em palco vai para lá de uma referência a um local específico e podia passar-se noutro meio rural, de outro qualquer país.
Sandra Faleiro, encenadora da peça explica-o em conversa com o DN. “Esta história podia acontecer em qualquer lugar do mundo, até numa cidade. A universalidade que este texto tem é transversal a todos os grandes textos: a condição humana. É um texto que tem muitas referências clássicas, de conto negro, até dos gregos. É trágico e cómico, e patético, tudo elementos que me pareceram muito interessantes para trabalhar.”
Estreada em 1996, em Galway, na Irlanda, a peça alcançou sucesso no West End de Londres e chegou à Broadway dois anos depois. Aclamada pela crítica, foi nomeada para um Prémio Laurence Olivier e para seis Tony Awards, incluindo na categoria de Melhor Peça.
Em A Rainha da Beleza de Leenane, a filha, Maureen, e a mãe, Mag, partilham a casa, mas também partilham rancores. A mãe é manipuladora e possessiva e vive com o medo, sempre presente, de que a filha a abandone e a deixe sozinha.
Por sua vez, a filha culpa a mãe por ter estagnado a sua vida, pela prisão de ter de cuidar da progenitora, ao contrário das suas irmãs, que saíram de casa para viver os seus sonhos.
Os dias, repetitivos, passam, até que um antigo pretendente de Maureen, Pato Dooley, farto de trabalhar em Inglaterra, quer seguir o sonho de emigrar para a América, e deixar Leenane, a sua terra natal, e o seu irmão Ray Dooley, menos ambicioso, para trás. A entrada em cena destas duas personagens masculinas vai fazer com que tudo na história das duas mulheres se altere.
Na sala-estúdio do Trindade a partir de amanhã (e até 31 de março) a peça é encenada por Sandra Faleiro e tem no elenco Paula Lobo Antunes (Maureen), Valerie Braddell (Mag), Nuno Nunes (Pato Dooley) e Vicente Gil (Ray Dooley).
Paula Lobo Antunes, atriz e produtora da peça, também em conversa telefónica com o DN, explicou que fazer esta peça partiu de um pressuposto muito simples: querer fazer algo em conjunto com Sandra Faleiro e a atriz Valerie Braddell, uma vontade que “já tinha anos”, garante. “Queria, juntamente com a Valerie, fazer uma peça de mãe e filha, até porque somos próximas e temos uma relação pessoal e a nossa diferença de idades permite isso. E, ao mesmo tempo, como sou fã incondicional do Martin McDonagh este texto foi o escolhido”. Conta que, inclusive, a curiosidade levou-as, às três - Paula, Valerie e Sandra -, numa viagem à Irlanda para conhecerem melhor a realidade de Leenane.
Sandra explica que não andou à procura do autor em particular, mas interessou-lhe muito a solidão destas personagens e as circunstâncias de vida. “É um lado universal que nos toca a todos. Li esta peça a seguir ao confinamento da pandemia de covid-19. E encontrei muitos paralelismos. Está a tornar-se senso comum que, mesmo agora, depois da pandemia, as pessoas continuam isoladas e recolhidas.”
Abordagem cinematográfica
Ambas as entrevistadas destacam a linguagem cinematográfica escolhida para a peça do Trindade. Paula Lobo Antunes sublinha que esse foi um dos grandes desafios: “Encontrar a linguagem certa que a Sandra [Faleiro] estava à procura. Uma linguagem muito cinematográfica. A minha personagem é uma mulher de 40 anos, rural e derrotada, quase animalesca, com uma verdade muito crua. E incorporámos isso com as luzes, com os vídeos, é feito quase como a edição de um filme, foi um trabalho de encenação de minúcia, de filigrana.”
Sandra confirma a busca por essa linguagem própria. “Faço referências, na peça, que a maioria de nós tem. A casa onde se passa a ação não é realista é meio-distorcida. Há gestos realistas, mas também há coisas muito surreais. Estamos a falar daquilo que distorcemos na nossa cabeça. Às vezes passam-nos sombras, imagens, mesmo em mentes sãs. Na peça existem os gestos do dia-a-dia, mas depois tudo isso se vai distorcendo”.
Questionada sobre as dificuldades na construção da peça e no trabalhar do texto, Sandra Faleiro explicou que a maior foi a adaptação para a língua portuguesa.“O irlandês é muito musical e tem, por si só, algum humor, sobretudo na forma como a ouvimos. O português é diferente. E como este texto diz coisas duríssimas, começámos a perceber, nos ensaios, que a peça estava a ficar muito pesada, insuportável. Não seria possível, suportável mesmo, duas pessoas viverem assim durante 20 anos. Por isso, tivemos que ir ao fundo do poço, dessa negritude e agressividade, dessa relação entre mãe e filha, para depois conseguirmos aligeirar e salvaguardar a comicidade que o texto também tem. Há muita ironia, humor e brincadeira. E foi isso que também procurámos.”
Temas atuais
Se a peça fala da relação familiar, há várias camadas que são sublinhadas no texto de McDonagh. Para além dos conflitos familiares, há a velhice, a solidão e até mesmo a saúde mental. Paula Lobo Antunes lembra que a sua personagem, Maureen, na história da peça teve um esgotamento e foi para um manicómio, “e, obviamente, há qualquer coisa nela que não está resolvida”.
Além disso, há os sonhos, comuns à condição humana. “Uma das personagens está a trabalhar em Inglaterra, mas quer ter uma vida melhor nos Estados Unidos, tem ambição, como todos nós.”
Paula Lobo Antunes sublinha a problemática, cada vez mais recorrente, do que fazer com as pessoas mais velhas, “com os nossos pais, quando já não conseguem tomar conta deles próprios”. “A ordem natural das coisas é que as mãe e os pais tomem conta dos filhos e não o contrário. O oposto da relação cria uma certa dificuldade em encontrar o amor. É muito complexo.”
A atriz acredita que há mais que o público poderá absorver ao ver a peça. “Na peça, as irmã de Maureen foram-se embora e ela ficou. Ela não merece ser feliz? Há na peça um alerta para encontrar uma compaixão e entendimento, porque a sociedade não pode abandonar as pessoas. É tão complexo que cada pessoa que for assistir à peça trará de lá qualquer coisa consigo”, acrescenta.
Paula Lobo Antunes explicou ainda que, cada vez mais, procura papéis que tenham uma mensagem. “Todas as peças, incluindo as clássicas, têm a ver com a relação humana e, cada vez mais, quero ter papéis em que exista um propósito por detrás.”
No final da peça, é notória a forma única como Martin McDonagh e a sua A Rainha da Beleza de Leenane fazem refletir sobre a condição humana. A encenação e o elenco ajudam-nos a gravar tudo isso na memória.