Sofiane Saidi: "Argelino ou francês? Sou parisiense"

O Festival Músicas do Mundo começou nesta quinta-feira e conta com o músico argelino e a sua banda Mazalda. O DN entrevistou Saidi em Cabo Verde, na noite em que também atuavam os Bulimundo, outro destaque do cartaz de Sines.
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Curiosamente, o argelino Sofiane Saidi, com os seis elementos da banda Mazalda que o acompanham, e os históricos Bulimundo aturam naquela mesma noite de abril, na Praça Luís de Camões, centro da cidade da Praia. O primeiro com o raï, música tradicional da Argélia e nele tão elétrica como a Paris que o acolheu aos 17 anos. Depois vinha a banda fundada por Katchás que mudou para sempre o funaná e cujas letras todos ali cantavam de cor, com especial força quando chegou a hora de Tó Martins, na voz de Zeca Nha Reinalda.

Três meses depois voltam a juntar-se, já não na mesma noite - naquela fazia-se a transição da feira de música Atlantic Music Expo para o festival Kriol Jazz - mas no Músicas do Mundo, em Sines, festival que começou nesta quinta-feira com a fadista Aldina Duarte, em Porto Covo.

Dali se rumará a Sines, e ao castelo. É lá que Sofiane Saidi atua no dia 26, quinta-feira, dois dias antes dos Bulimundo. A eles somam-se nomes como Sara Tavares, Elida Almeida, Yasmine Hamdan, Sons of Kemet, Gili Yalo, Havana Meets Kingston, Alsarah & The Nubatones ou Vieux Farka Touré.

O DN conversou com Sofiane Saidi depois do seu concerto na cidade da Praia, antes de os Bulimundo entrarem em palco.

Havia música em sua casa?

Um dos meus tios partiu para os Estados Unidos, para a Califórnia, nos anos 1960, e conheceu muitos artistas nesse período meio psicadélico. Enviava-nos vinis para casa. Vinham para o meu irmão mais velho, eu era pequeno, e quando ele os recebia eu ficava muito curioso para os ouvir.

Que discos eram?

Jimi Hendrix, Santana... Os vinis nem tinham nome, vinham em branco. Cresci um pouco com isso. Outro tio ouvia muita música egípcia. O meu irmão mais velho reparava amplificadores, era especialista. Então havia sempre música lá em casa. Eu não gostava de jogar futebol com os outros rapazes, não era a minha coisa. Por isso estava muito por casa, e ouvia muita música.

E não fazia nada com isso? Não cantava?

Não. Mas a certa altura comecei a dizer a mim mesmo: "Acho que sei cantar." Mas não cantava. Sabia que tinha qualquer coisa, mas não o podia explicar à minha família, aos meus amigos: é como uma bênção ou uma maldição. Um pouco mais tarde, quando fui para a escola, sempre que chegava atrasado cantava uma música aos vigilantes e eles davam-me uma nota de justificação. Percebi que era um poder. A sedução é como um passaporte. Disse para mim: "Nada mau."

Que idade tinha nessa altura?

12, 13 anos.

Não é a altura em que a voz de um rapaz está a mudar?

Eu tive a voz grave muito jovem. A certa altura eu e uns amigos ouvimos a música de um casamento ao longe, vinha com o vento. Seguimos a música e quando chegámos havia um grupo a tocar. Esperei pelo momento em que os músicos estavam a comer para ir para o palco, e cantei. Correu bem. Esse grupo começou a levar-me para as festas com eles. Depois comecei a ganhar algum dinheiro com a minha voz. E percebi que talvez aquele viesse a ser o meu ofício.

Cantou nos melhores clubes de Orã até fugir da Frente Islâmica de Salvação. Como foi?

Em 1988 vieram as manifestações na Argélia. A primavera árabe argelina sem Facebook, sem nada, sem cobertura alguma. Eu estive preso durante uma semana, porque participei. Depois desse episódio decidi partir. A Argélia mudou de rosto, havia problemas de integração. Era preciso partir, e parti. Cheguei a França sozinho. Tinha 17 anos.

A França era uma escolha provável? Como Portugal para um cabo-verdiano?

Havia uma história comum de 30 anos. É como um casal, zangado, mas com muita paixão. Como os cabo-verdianos e Portugal. Paris acolheu-me, por vezes com dificuldade, noutras vezes bem. Tornei-me alguém considerado em França. Comecei a cantar muito em cabarés. As pessoas que fugiram do fundamentalismo na Argélia criaram em Paris o mesmo ambiente que havia lá, antes: os marginais, os homossexuais, os travestis, os jornalistas, os cantores uniram-se.

Chamam-lhe "o príncipe do raï (música folk argelina) 2.0". Consegue perceber o que muda na sua música por fazê-la longe da Argélia, em Paris?

Quando me perguntam se me sinto argelino ou francês, respondo que sou parisiense. Paris permite todas as misturas. A minha música mudou, tem muitas sonoridades diferentes. Acho mesmo que também há qualquer coisa de Cabo Verde em Paris. Quando vou aqui a um restaurante a música não me parece muito distante. Ouvi um grupo tocar e havia o ambiente do Brasil, de Portugal, de África, é impressionante.

Gostava que falasse um pouco de pelo menos uma das suas letras.

Há uma que cantei [no concerto que deu no Atlantic Music Expo] que se chama As Estrelas [El Ndjoum no original, que dá título ao último álbum de Saidi], é sobre dois seres que se encontram, e que estão um pouco tristes, não encontram amor que lhes corresponda; procuraram, encontraram muita gente, mas não era o homem ou a mulher da sua vida, continuam a procurar, e então encontram-se, mas tiveram experiências diferentes no amor. E decidem os dois fazer uma viagem pelo cosmos. Dizem: "Como lua-de-mel vamos ver as estrelas." É uma imagem.

E raï, o que significa ao certo?

Quer dizer opinião, parecer. E a minha opinião é que devo viver, e vivo, como tenho vontade de viver. Ninguém tem o direito de me vir dizer: tens de fazer isto ou não. É uma espécie de reivindicação de liberdade individual, de viver de forma livre.

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