“Como é que se filma o Luís Miguel Cintra? Com que lata é que se aponta uma câmara para aquela maravilhosa criatura?” As interrogações de Sofia Marques são legítimas, mas o trabalho está feito: em Verdade ou Consequência?, a atriz e realizadora filma o grande homem do teatro e do cinema, seu amigo, procurando as imagens e palavras justas e apoiando-se num guião solto, ou inexistente, para lhe agarrar o movimento da memória e da imaginação. Um movimento sincero e suave, triste e alegre, quente e impressionista. Como um quadro capaz de guardar todas as sensações do presente, ou a página de um livro aberto aleatoriamente, que deve continuar assim, com a vida a pulsar na letra impressa. .Em entrevista ao DN, Sofia falou do prazer que foi “estar em casa” com Luís Miguel Cintra durante uns tempos e, no fundo, captar a sua verdade interior. Provavelmente, a verdade que Jean Renoir procurou nos filmes coloridos da última fase da sua obra, como A Comédia e a Vida (1952), com Anna Magnani, e Le Petit Théâtre de Jean Renoir (1970), ambos citados no documentário, ambos reflexões artificiosas sobre a relação entre o teatro e a vida. Cintra escolheu o teatro e, ainda que esteja retirado dos palcos, este palpita em cada segundo de um olhar humanamente fascinante – não por acaso, Verdade ou Consequência? venceu o Prémio do Público no DocLisboa de 2023. .No início do Verdade ou Consequência? há uma espécie de declaração de intenções: a Sofia quer conversar com o Luís Miguel Cintra. E para nós, espectadores, trata-se também de matar saudades de um gigante. Como é que se definiu a vossa proximidade ao longo do tempo, no sentido de tornar estas conversas naturais? Eu entrei com 19 anos no Teatro da Cornucópia, o que significa que acabei por me formar, até como pessoa e cidadã, junto de quem faz parte dessa companhia, particularmente, o Luís Miguel Cintra e a Cristina Reis. E todas as conversas, desde os meus 19 anos até à idade que tenho hoje, 48, foram sendo aprofundadas, da mesma maneira que a minha relação com o Luís Miguel foi ficando diferente, muito mais próxima e familiar – neste momento, considero-o uma pessoa da minha família, sem dúvida nenhuma! Para além disso, o facto de ter integrado cerca de 30 peças encenadas por ele, de ter sido sua assistente de encenação umas três vezes... São horas e horas a estar junto daquela cabeça, do seu modo de pensar e de ver o mundo, em especial, do seu modo de pensar a vida através da arte que faz. Portanto, é algo a que já estava muito habituada, e quando comecei a ter estas conversas filmadas, foi difícil para ambos, porque correspondeu ao momento em que o Teatro da Cornucópia deixou de existir. Dito isto, talvez inconscientemente – e pegando no que disse sobre as saudades do Luís Miguel – eu não quisesse deixá-lo ir embora. Não queria passar por essa sensação de “não saber dele há tanto tempo”. .E qual foi o primeiro passo do filme? Foi uma coisa muito espontânea: tínhamos ido a Espanha para apresentar o meu outro documentário, Ilusão [2014], e ele perguntou-me se eu já tinha visto o quadro do Picasso que está no Museu Rainha Sofia, o Guernica. Quando lhe disse que não, o Luís Miguel logo “então tenho de mostrar-te o quadro, porque é muito importante que o vejas!”. E foi dos momentos mais bonitos da minha vida com ele. Decidi naquele instante que queria mostrar às pessoas o Luís Miguel a que tenho acesso de uma maneira tão fácil. Nesse dia, apresentei-lhe o desafio de um filme baseado nele, mas à volta da nossa intimidade e confiança mútua. .O olhar de Sofia Marques..Por falar em espontaneidade, há muitas frases bonitas que ele diz espontaneamente, ideias preciosas lançadas num discurso entre a pura informalidade e a erudição. Este é o verdadeiro Cintra? É completamente o verdadeiro Cintra. Aliás, nada é manipulado neste documentário, nem mesmo a música que se ouve, ou quando ele está ao computador num domingo chuvoso na sua casa de Vila Nova de Gaia... É das coisas que não se esquece: um fim de tarde invernoso mas muito confortável, em que apetecia estar ali com ele, não estando nada a acontecer. Estávamos em pausa, e no entanto eu senti que estava a acontecer tudo – é um pouco como se conseguisse ver com os olhos que me ensinaram a olhar o mundo. A propósito (e isto não entrou no filme), tenho imensas fotografias, tiradas ao longo do tempo passado com ele, em que o tema é “o Luís Miguel a fotografar alguma coisa”. E essa ideia esteve sempre na base do filme: aqui são os meus olhos a observarem os olhos dele a olharem o mundo. De resto, coisas bonitas tenho em imenso material, mas claro que não dava para pôr tudo. .Diria que fugiu ao documentário convencional e fez sobretudo um filme de “impressões” da vida dele... Sim, há tanta informação na internet, e mesmo aquilo que ele escreve... Eu quis seguir um lado mais original, que inclusive tivesse mais a ver com o próprio Luís Miguel – ele não é um ser organizadinho, é uma criatura muito livre, uma cabeça muito contraditória, sentimental, provocadora, lá está, original! Ou seja, sempre achei que o filme deveria ter uma estrutura desorganizada dentro de uma certa organização, à imagem dele. E isso fez com que andasse constantemente à procura de momentos que surgissem de forma natural; nunca lhe disse nada do género “vamos agora filmar aquela parte”. Eu estava simplesmente ali em casa, durante horas e horas... na verdade, anos! Começámos por filmar em Madrid, onde ele nasceu, e depois, com as precauções da pandemia, a equipa ficou reduzida a mim própria, o que também contribuiu para que nada caísse no convencional. A mim apetecia-me algo poético, irreverente, quase a bater na ficção. Porque é uma história a ser contada, não é um documentário puro e duro em termos de narração de factos. .A(s) câmara(s) sobre Luís Miguel Cintra..O plano de rodagem manteve-se mais ou menos o mesmo ou teve uma evolução inesperada? Inicialmente, tinha vontade de fazer muitas viagens com ele, a lugares que fazem parte da sua formação, países que dizem algo da sua história pessoal. Mas com as limitações que se impuseram, percebi que essas viagens não eram fundamentais – a de Madrid, sim, porque além de ser o seu local de nascimento, é uma cidade pela qual ele continua a sentir uma atração enorme; pela cultura espanhola em si. E depois toda a reflexão causada pelo confinamento, o significado da casa, o facto de ser o lugar onde nos sentimos mais seguros... tudo isso moldou o filme. Mais uma vez, é o mundo visto a partir da casa. .Aliás, a memorabília parece-nos aqui muito importante. Ele é apegado aos objetos, não é? É, muito, muito... Na casa de Lisboa tem uma autêntica coleção de personagens. E isso foi um aspeto muito engraçado, porque eu não sabia como filmar aquelas imagens [sacras], e só à medida que me habituei a elas é que consegui escolher as que me interessavam mais, as que se destacavam na nossa vivência quotidiana, as que, de certa maneira, eram as espectadoras dos nossos dias. .Outro dos aspetos comoventes é o facto de ter permitido que ouçamos nitidamente a respiração pesada do Luís Miguel Cintra. É uma forma de sinalizar o próprio corpo vivo que é o filme? Para mim, a respiração é a protagonista do filme – é o pulsar, é a vida, é o insistir, é a teimosia, é o andar para a frente e querer mudar o mundo. E assumi que não seria um problema. Se calhar para qualquer profissional do som aquela respiração é um obstáculo, por ser algo que o espectador sente muito, que está connosco o tempo todo. Mas eu gosto muito: é o coração. .Entre o teatro e o cinema, Cintra escolhe o teatro. Mas recorre ao cinema, através de dois filmes de Jean Renoir, para demonstrar esse amor pelo teatro na relação com a vida... Há distinção entre as duas artes? Acho que, para ele, não existe muita diferença entre o teatro e o cinema: ele é o ator por excelência. A maneira como trabalhou no cinema foi com o mesmo rigor e empenho que o vimos trabalhar no teatro, enquanto encenador e ator. Esses filmes [A Comédia e a Vida e Le Petit Théâtre de Jean Renoir] foram uma forma de traduzir a sua escolha pelo teatro, em vez da vida. É por isso que, neste momento, sem o teatro, ele não é feliz – a vida só lhe interessa na medida em que lhe permitia pensar a sua arte; ele depositava-a na arte. Agora retirado, a vida custa-lhe e pesa-lhe. Mesmo que ainda tenha imensas capacidades intelectuais para continuar a fazer os espetáculos: encenou três já sem a Cornucópia. .Precisamente, também o vemos aqui a ser encenador... Sim, mas a minha vontade era mostrar o homem. Muitas pessoas imaginam-no como um homem duro, pouco acessível... Um super-homem! E eu gostava que se sentisse, em primeiro lugar, a sua condição de homem igual aos outros. Quis dar ao espectador o acesso que tenho ao Luís Miguel, naquela informalidade de nos sentarmos com ele para conversar, porque ouvir o que tem para dizer é sempre muito prazeroso. E percebi, no processo de ir à procura dele, que o próprio estava à procura de um outro Luís Miguel Cintra, que lhe desse motivação para continuar a viver, sem ser só através da construção dos espetáculos. Foi um caminho de aprendizagem, às vezes bastante duro, que desenvolveu ainda mais a admiração e amor que lhe tenho.