Soares é Fixe - o que está por detrás da evocação
Por detrás de Soares é Fixe está um conceito e um desejo. O filme de Sérgio Graciano sobre a vitória de Mário Soares nas Presidenciais de 1986 faz parte de algo maior: um projeto que visa cruzar histórias de dois nomes fortes da nossa democracia: Mário Soares e Álvaro Cunhal, este último fazendo do relato da fuga do histórico líder do PC do forte de Peniche o tema central. No caso de Cunhal a estreia ainda não tem data confirmada (pode ser ainda antes de 25 de abril) e o título para já é Camarada Álvaro mas pode mudar para Camarada Cunhal. Mas ainda antes de tudo isso está o tal desejo. O desejo de um produtor que é também conhecido por ser elemento da SAD do Benfica, José Francisco Gandarez, o homem forte da Sky Dreams Entertainment, em levar ao ecrã figuras relevantes da política nacional – antes desta dupla já tinha produzido Snu, de Patrícia Sequeira, onde se contava a história de Sá Carneiro e de Snu Abecassis, e Salgueiro Maia- O Implicado, de Sérgio Graciano, biografia do herói de Abril.
“Acima de tudo, não são filmes com ideologia”, conta ao DN na véspera de uma antestreia em Lisboa. “O facto de estrear perto agora das eleições é uma coincidência – a estreia já estava marcada há um ano. Até brinquei no outro dia e disse que fomos nós quem provocámos a queda do Governo e a ironia é que este é um filme que alerta para a necessidade de irmos todos votar. Mas Soares é Fixe nasce mesmo desta nossa ideia de tentar homenagear os fundadores do Portugal democrático. Fizemos Sá Carneiro, Salgueiro Maia, Soares, Cunhal e, mais tarde, tentaremos Eanes! Isto é uma tentativa de mostrar aos nossos miúdos quem são as figuras da nossa História e a sua importância. Para mim, como filho da Liberdade, é importante documentar o Portugal democrático e não menos importantes são estas comemorações dos 50 anos do 25 de abril”. Aliás, quem a partir de dia 22 for ver este Soares é Fixe vai poder perceber que Eanes e Cunhal têm já presença notória, nomeadamente a partir de transformações bem sucedidas de João Tempera e Victor d'Andrade, este último um Cunhal perto da fisionomia perfeita.
Para muitos, a surpresa deste relato de Soares, que em breve terá novos desenvolvimentos, é o facto de nunca vermos o seu lado bonacheirão. Aliás, Tónan Quito (Tristeza e Alegria na Vida das Girafas) é um Mário Soares que nunca se ri. Vale pela sobriedade, mas espanta por uma certa falta de alegria de vida, coisa que segundo Gandarez se deveu aos conselhos do filho João Soares cuja orientação realçava o stress e apreensão do seu pai na noite da vitória ante Freitas do Amaral. Um pessimismo de alguém que se preocupava como Portugal estava tão dividido entre direita e esquerda, coisa que agora parece tirada a papel químico com o nosso atual momento político...
E voltando à questão da ideologia, reforça-se a dúvida: é possível filmar Soares sem ponto de vista? O produtor responde: “não penso que seja um filme a apelar à esquerda, fala sim de um dos nossos fundadores da democracia! Queremos mostrar o homem que lutou por isso! Se tenho admiração por Soares? Respondo apenas lembrando que fiz Sá Carneiro, Salgueiro Maia e Cunhal...Os interesses são contraditórios – não consigo defender as ideologias deles todos...Quem escreveu esta história tem de admirar o homem: o nosso guionista, João Matos, estudou no Colégio Moderno! O meu desejo é que quem gostava do dr. Mário Soares goste deste filme!”.
Entre a escala televisiva e o orçamento possível, Soares é Fixe é o primeiro de muitos projetos do audiovisual que vão chegar aos cinemas e às televisões no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de abril. Em abril, para além provavelmente do filme sobre Cunhal, está confirmado também Revolução (sem) Sangue, de Rui Pedro Sousa, obra que evoca as vítimas mortais do dia da revolução. Será que a quantidade de filmes vai ter eco nas bilheteiras?
Gandarez não fala sobre esse filme que desconhece mas sobre as suas obras queixa-se da forma como os filmes são promovidos, chamando atenção que quando fez Pátio das Cantigas, de Leonel Vieira, o êxito foi grande porque as marcas associaram-se. Para o produtor é fundamental haver mudanças: “temos que pensar que a nível do ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual] era importante ter mais orçamento e menos projetos, não sendo tão elitista na escolha dos projetos. Porque será que as comédias não podem ser apoiadas!? Não podem haver projetos para adolescentes? Porque não!? Não estou com isto a dizer que não haja espaço para projetos mais artísticos e de autor. Só que o dinheiro não pode ir todo para aí e o estudo internacional que o ICA encomendou diz que têm de haver mais apoios automáticos”.
Mote da Sky Dreams
Filmes como Soares é Fixe vão ser a pedra de filosofia da missão da Sky Dreams. Isto numa altura em que a produtora vai começar também a fazer cada vez mais televisão, sobretudo a pensar nas plataformas. Não é por acaso que as séries se transformam em filmes antes de chegarem ao pequeno ecrã. “O meu objetivo é contar histórias, executar projetos bem feitos. Somos uma boutique de conteúdos que também pensa no streaming e na televisão para fazer unicamente ficção. Sempre fui uma pessoa muito criativa, muito “idiota” e sonhador. O objetivo é contar histórias portuguesas com portugalidade. Se puderem ser internacionais, melhor...Têm é de ser boas histórias, independentemente do género. Por exemplo, quero fazer um musical e já tentei uma animação”, esclarece o produtor-advogado prosseguindo que o lucro nesta área é muito difícil: “para o cinema é mesmo complicado, sobretudo se não tivermos o apoio do ICA. O valor que as televisões dão é pequeno e também é pequeno o valor do mínimo garantido das distribuidoras”. A seguir, José Francisco Gandarez está a tentar colocar de pé uma projeto a partir do imaginário da música dos Xutos e Pontapés, um filme que ainda está em fase de concurso e que terá o título de Circo de Feras.
Para quem será verdadeiramente este filme?
Quando lhe perguntamos se fica incomodado com ressabiamentos de outros produtores portugueses nas redes sociais que insinuam que Soares é Fixe é uma manobra para colocar o Chega no poder, ignora e volta a lembrar que o filme já estava para estrear-se nesta data há um ano: “as pessoas já ligam pouco à política, esta coincidência da nossa estreia até é boa para despertar o público para a atividade política. Aliás, é a melhor altura! Mas sobre produtores portugueses não me relaciono com muitos, embora tenha dado parabéns a alguns. Por acaso, acabei de ver a série Matilha e gostei muito mas não conheço o produtor. Também gostei de Rabo de Peixe”. Insistimos que talvez seja fundamental distinguir série e filmes mas a resposta é pronta: “estamos num mundo em que nos carros já há Smarts, nos telefones já temos telemóveis, etc. O mundo evolui e há que ir contra o vento. Ou nos adaptamos ou então não sei. Tenho para mim que o cinema terá sempre o seu lugar – um grande ecrã terá sempre o seu peso. O glamour do cinema permanece e as pessoas, depois da pandemia, estão mesmo a voltar às salas”.
Numa altura em que o cinema português dá alguns sinais positivos de retoma de público – o díptico de João Canijo, Mal Viver e Viver Mal, fez números respeitáveis e os mais de 100 mil espectadores de Pôr do Sol- O Mistério do Colar de São Cajó, de Manuel Pureza, não são uma desgraça, a estreia de Soares é Fixe tem alguma ambição comercial, mesmo pensando que A Semente do Mal, de Gabriel Abrantes, ainda não tenha chegado a 15 mil bilhetes (número que, mesmo assim, não é nenhuma vergonha). A grande questão é se os portugueses querem ser confrontados com a sua memória histórica contemporânea. Na essência, sobra a dúvida: Soares é Fixe tem a linguagem pedagógica adequada para o público mais jovem que não viveu as exaltações da noite eleitoral de fevereiro de 1986 ou se é para a nostalgia dos que viveram as eleições mais disputadas da democracia portuguesa?