"Só é possível compreender a verdade do homem a partir da verdade das mulheres"
O novo filme de João Mário Grilo, Campo de Sangue, chega esta quinta-feira às salas de cinema. Tendo como ponto de partida o romance homónimo de Dulce Maria Cardoso, nele encontramos um homem ("Ele", interpretado por Carloto Cotta) a deambular através de um labirinto feminino: um belo exercício de cinema à procura de uma certa redenção.
Num texto de apresentação de Campo de Sangue escreveste que estavas longe de imaginar a "vertigem" em que ias cair. Que vertigem foi essa?
Tem que ver com características muito especiais da escrita da Dulce Maria Cardoso. O primeiro guião escrito pelo Luís Mário Lopes a partir do romance já não era propriamente uma adaptação, mas sim uma interpretação do romance; sobre tudo isso elaborámos ainda um outro guião, que é uma interpretação do primeiro. A escrita da Dulce precipita isso, porque, para mim, ela não é essencialmente uma criadora de histórias, mas sim de personagens e memórias. E há uma dimensão tocante nessa escrita: podes cruzar-te na rua com aquelas personagens, são figuras que habitam o teu quotidiano. No filme, eu dou nome a algumas personagens, mas no romance a única personagem que tem um nome é a Eva - a personagem dele (Carloto Cotta no filme) é apenas "Ele".
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Como podemos, então, definir o tom ou o estilo do romance?
Não o sinto como sendo "romanesco". Num certo sentido, é pouco orgânico, fragmentado, marcado pela exuberância das personagens como atratoras de energias. Ora, um filme dá-se mal com essa inexistência de uma estrutura - a vertigem de que eu falo decorre dessa ausência. Era preciso procurar um outro espaço, que seria descoberto pelo Luís Mário Lopes ao colocar a própria Dulce como protagonista do guião: "Ele" regressa ao encontro da escritora que o criou.
"Desde a escrita do argumento até à montagem, passando, claro, pela rodagem, eu... deixei-me ir- aprendi a ir com o filme. O que espero é que, tal como eu, o espectador jogue o jogo do filme, que se deixe ir na voragem, esperando o momento da redenção."
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Como é que a própria Dulce Maria Cardoso recebeu essa ideia de, no fundo, ser uma personagem?
Eu vejo a Dulce como um ser absolutamente cool. O romance tem 20 anos e creio que posso dizer que da parte dela havia uma genuína curiosidade em saber o que se iria fazer com o livro, sem querer de modo algum determinar o destino do filme, que, escusado será dizer, também nunca foi o destino do romance - no filme, o romance existe como uma "reminiscência".
Seja como for, essas personagens que podemos encontrar no nosso quotidiano não deram, de modo algum, origem a um filme realista.
Não... [risos] Eu diria que é um filme "hiper-realista". Há uma lógica de retrato, uma galeria de quatro mulheres.
O filme conta o diálogo daquele homem com essas quatro mulheres. Do teu ponto de vista, isso justifica, ou não, que o filme seja interpretado como um ensaio sobre as relações masculino/feminino?
Sim, até porque esse aspeto tem que ver com algo para mim essencial. Ou seja: a presença de Os Contos de Genji, que muitos consideram ser o primeiro romance da história da literatura. Foi escrito no século XI, não por acaso também por uma mulher (com o pseudónimo de Murasaki Shikibu), e retrata as relações do príncipe Hiraku Genji com as várias mulheres que marcaram a sua vida.

Qual a relação entre uma coisa e outra?
Na corte japonesa do século XI as mulheres não falavam diretamente com os homens - falavam entre elas sobre os homens. E isso é a essência de Genji. No caso de Campo de Sangue, para mim, o "Ele" do filme não existe, é uma projeção das vontades, desejos, memórias e histórias daquelas diferentes mulheres: a mãe, a namorada, a ex-mulher, a dona da pensão... a própria Dulce.
Considerando o campo das mulheres (para usarmos uma palavra que está no título), isso significa que nesse campo há uma verdade a que os homens não têm acesso?
Sinceramente, acho que sim. Tentei criar um movimento que tornasse isso palpável. Podemos até usar um termo do cinema: eu acho que "Ele" é uma coprodução da Dulce Maria Cardoso e das várias mulheres que a escritora cria para compor essa figura. Nesse sentido, creio que não é por acaso que o livro é dedicado ao pai - só é possível compreender a verdade do homem a partir da verdade das mulheres.
Será que isso está presente na obra das mulheres cineastas?
Não há muitas... Mas sim, sem dúvida, basta pensar em Germaine Dulac (1882-1942) ou Maya Deren (1917-1961): são mulheres que aparecem no cinema pelo lado experimental, por um cinema muito mais livre em relação aos códigos masculinos de organização de espaço e tempo. E há Marguerite Duras (1914-1996), figura lapidar, para mim, enquanto cinéfilo e espectador. Ela é uma marca profunda na minha vida. Além do mais, lembramo-nos dela no Festival da Figueira da Foz: à noite, às duas da manhã, era possível ouvir pessoas a assobiar, na rua, a música do India Song (1975)... Episódio que sempre a comoveu muito.
Tendo tudo isso em conta, quais são as tuas expectativas em relação ao espectador que irá ver Campo de Sangue?
Desde a escrita do argumento até à montagem, passando, claro, pela rodagem, eu... deixei-me ir - aprendi a ir com o filme. O que espero é que, tal como eu, o espectador jogue o jogo do filme, que se deixe ir na voragem, esperando o momento da redenção. Creio que o filme dá isso: uma compensação pela vontade de o espectador se perder no seu interior. Para mim, essa perdição que o filme constrói é uma homenagem às mulheres.
Deixaste-te ir... e foste dar onde?
A um sítio onde, na verdade, nunca estive.

Obra de Dulce Maria Cardoso inspira o filme.
© D.R.
Que sítio é esse?
Podemos defini-lo a partir do título do filme que fiz em 2015, sobre Rui Chafes, por encomenda da Fundação Gulbenkian: Viagem aos Confins de Um Sítio onde Nunca Estive. Faz-se um caminho e não sabemos muito bem onde vamos dar. Isso é o cinema.
O teu filme (como, em boa verdade, todos os filmes, portugueses ou não) enfrenta uma situação de mercado - que não deixa de ser uma conjuntura cultural específica - em que sentimos que há uma certa decomposição dos modos tradicionais de ser espectador de cinema. Como encaras essa situação?
Com uma certa angústia. Seja como for, as coisas não mudaram muito desde que, creio que em 1976, Jean-Luc Godard disse que não é difícil levar as pessoas ao cinema, o que é difícil é fazê-las sair de casa. Há hoje uma evidente dificuldade de inscrição do cinema na vida social. Tem a ver com o metro quadrado... Se pensarmos na primitiva sala de cinema, no lendário Picture Palace, havia ecrãs verdadeiramente "bigger than life", como dizem ou diziam os americanos - o metro cúbico imperava sobre o metro quadrado. Agora, a lógica imobiliária aplicada ao cinema faz com que os ecrãs se tenham espalmado, cortando com a monumentalidade que se projetava em altura. Tudo isso retirou escala ao cinema.
E consequências práticas?
Desde logo, a dificuldade de fazer ver às pessoas que o cinema só acontece em certos sítios. Não acontece na casa das pessoas, não acontece num telemóvel. Para mim, o desaparecimento da sala e do espectador de cinema é o desaparecimento de uma forma de perceber o mundo. O que é gravíssimo. É como se a Capela Sistina desaparecesse: deixaste de ter acesso a uma certa desmesura que o cinema é, por essência. Daí que os filmes sejam cada vez mais horizontais, mais conformados a uma miniatura daquilo que o cinema já foi. No telemóvel podemos ter um filme, mas não temos o cinema. Acho que é preciso travar essa batalha, que ainda não foi realmente travada.
Que batalha?
A batalha pelo espectador. Pelos seus direitos e pela sua liberdade. Há muito por fazer - a começar pela escola.
dnot@dn.pt
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