Sete destinos literários para um mundo a ir de férias
O que escolher para ler nas férias? Os romances apresentam-se com a primeira opção, mas entre estes há livros de toda a espécie, principalmente aqueles em que a prosa pode tomar vários aspetos e direções: conhecer a Sibéria através dos seus pianos, é uma delas, numa versão tão bem "romanceada" que a leitura é bem mais suave do que uma viagem no Transiberiano, mas onde as descobertas têm o mesmo impacto; percorrer os Estados Unidos num velho Studebaker atrás das miragens adolescentes, descobrir os meandros da Catalunha num romance disfarçado de policial... dê-se início à grande viagem.
Não faltam vidas reais que dão bons romances, o problema é mais o facto de que essas vidas sejam narradas de forma credível. Entre os portugueses do século XX, há uma mulher que decidiu viver como se fosse a protagonista de um romance e Ana Cristina Silva fez-lhe a vontade. Chama-se Annie Silva Pais e era filha do último diretor da polícia política portuguesa. O que a autora faz é contar uma história inesperada, como é a de uma filha de um dos principais responsáveis pela repressão do Estado Novo "fugir" para Cuba e lá apaixonar-se pelos protagonistas e pela revolução em curso, contrariando todo o percurso da família e o que lhe estaria destinado socialmente.
Tendo ido para a Ilha por outras razões que não a dissidência política, Annie confronta-se com uma realidade em que se encaixa de outra forma - surpreendente - que não a portuguesa. A mudança para Cuba deve-se a razões profissionais do marido e o que se segue à frustração da vivência do casamento. Para se chegar à compreensão dos verdadeiros motivos da alteração de propósitos da protagonista existem dezenas de páginas em que é passada em revista a sua adolescência e entrada na idade adulta, bem como o meio social em que se integrava. O modo narrativo escolhido é interessante, uma carta a realçar certas questões que a preocupam e o desenvolvimento no capítulo que se segue, com as consequências dessa insatisfação.
Pouco habituados a assistir a "revoluções" na vida das mulheres do século passado, o que a escritora faz é convocar o leitor para uma expedição inesperada e difícil de acreditar que pudesse ser possível percorrendo os momentos em que uma pessoa decide tomar conta da sua própria vida. Como o cenário verdadeiro dessa mudança facilita a narrativa, mais real se torna a cada página o romance sobre esta mulher que fez uma opção radical, desembocando-se gradualmente num cenário em que Annie convive com protagonistas reais que se conhecem da História e que neste À Procura da Manhã Clara se materializam de uma forma tão concreta que fazem do livro um objeto necessário e de leitura sôfrega. Até porque retrata uma época de ideais entretanto desaparecida na confusão das transfusões envenenadas que as redes sociais provocam, retirando um coletivo da vida dos cidadãos a troco de um eu egoísta, esvaziando o palco de uma humanidade que sempre povoou os grandes romances.
À Procura da Manhã Clara
Ana Cristina Silva
Editora Bertrand
295 páginas
Uma crónica de Mario Vargas Llosa tratava recentemente da "investida policial" do autor catalão Javier Cercas. Não que o escritor tenha participado numa ação da polícia, mas daquela tentação que a dado momento do percurso os grandes autores sentem por um género considerado menos importante no vasto campo da literatura. Não é a primeira incursão, antes uma segunda e sob o mesmo cenário e personagens. A sequela tem por título dominante Terra Alta, com o subtítulo identificativo Independência, que o diferencia da primeira tentativa pela escrita policial. Tal como Vargas Llosa afirmava no seu texto, receava-se que Javier Cercas se perdesse após obras tão importantes com Soldados de Salamina ou Anatomia de um Instante, mas não é isso que acontece. O catalão - a origem é fundamental nestas narrativas - pratica o género policial com muita mestria, mesmo que se note uma predileção por elaborar o protagonista até a um nível que nem sempre é necessário neste seu novo estilo. O que Cercas faz é escalpelizar os novos tempos da Catalunha após a sedição tentada pelo povo e liderada por um punhado de nacionalistas que desejavam uma nação independente do governo central de Madrid. É curioso como Javier Cercas se aproveita das investigações da polícia para demonstrar o estado da civilização de um enclave entre Aragão e França onde reina essa vontade independentista a par da corrupção económica e política. No caso da última, torna-se o melhor palco para o autor montar a sua intriga, com que ao mesmo tempo desmascara os novos tempos da uma realidade social e recupera os vícios de empresários e políticos de sempre, aprisionando-os numa memória destrutiva que ainda não se apagou no seu inspetor Melchor.
Independência
Javier Cercas
Porto Editora
325 páginas
O ex-gestor de fundos financeiros Amor Towles teve um sucesso inesperado com o seu primeiro romance e desde aí abandonou a profissão e dedicou-se à escrita. Um Gentleman em Moscovo apresentou-o aos leitores e agora, ao terceiro romance, volta a convencê-los com um road-book sobre a América e a história de dois pares de jovens rapazes que atravessam o país em busca de solucionar certos mistérios familiares e desfrutar dos prazeres pessoais que uma viagem por aquele país permite ao desbravar-se um quase continente. Por muito que coloquem este Lincoln Highway em paralelo com o famoso Pela Estrada Fora de Jack Kerouac, é um erro fazê-lo pois engana o leitor. Não que Towles evite replicar as andanças de Kerouac e a índole de uma Beat Generation, mas ninguém consegue refazer décadas depois um ímpeto libertário, reproduzir um conflito de classes e de mentalidades, bem como o efeito psicadélico de certas experiências, e a imitação nunca convencerá. De qualquer modo, o objetivo do escritor é diferente e esse encontra-se no facto de evocar fundo a vivência humana, indo ao próprio Homero de forma a consegui-lo nestas páginas. Trata-se do relato de dez dias na vida de quatro jovens nos anos 1950, que atravessam parte daquele país e assim permitem ao leitor confrontar-se com sentimentos datados e atitudes diversas das que hoje a sociedade sente e vive. Daí que essa fuga ao presente seja a melhor justificação para se dar o braço aos heróis simples que o escritor reergueu por via da aventura e da sua própria descoberta perante uma realidade que não aceitam.
Lincoln Highway
Amor towles
Editora D. Quixote
607 páginas
Em tempo de um (in?)justo cancelamento da cultura russa devido à atrocidade da brutal invasão da Ucrânia, a autora Sophy Roberts traz uma possível exceção a essa atitude em Os Pianos Perdidos da Sibéria, uma grande expedição cultural, humana e musical, a uma das partes mais inóspitas do planeta. O objetivo do livro é claro: a pianomania que vigorou na Rússia entre 1762 e 1917. O que a escritora faz neste relato é a transcrição do seu périplo pela Sibéria em busca daqueles que fizeram de tocar piano uma vida à parte da realidade e que através do instrumento alteraram os poucos sons que por aquela geografia se fazem ouvir além do abandono gelado. É a reprodução do degelo ou da neve a cair que preenchem as primeiras páginas de um lugar tão diferente que só a música permite sensações como as dos restantes habitantes da Terra, sensibilidade que é destacada ao invés do que mais se conhece, ser o canto de desterro de criminosos e dissidentes.
O que Sophy Roberts pretende em quatrocentas páginas é referenciar os executantes deste instrumento, espalhados por todo um território onde existe uma abundância de belos pianos: "de cauda, verticais e mais de cinquenta Steinway". A sonoridade deste Sibéria é impressionante e, não sendo um romance, resulta numa ótima leitura que combina a viagem, o poder da música e a observação e descrição de seres que ultrapassaram o destino natural siberiano. Com o acrescento de a autora saber dedilhar todas as cordas da emoção humana perante a composição musical, a sua interpretação a qualquer custo, bem como rastrear os sentimentos que enchem estas páginas de uma "partitura" que impede qualquer paragem mal se a inicia.
Os Pianos Perdidos da Sibéria
Sophy Richards
Editora Temas e Debates
410 páginas.
Não é um tema muito tratado na literatura de origem polaca o do amor entre pessoas do mesmo género, mas Tomasz Jedrowski - nascido na Alemanha mas filho de pais polacos - surge numa tradução recém publicada em Portugal como um dos exemplos de uma escrita que não tem sido posta de parte - ou aproveitada apenas comercialmente - pelo mercado editorial devido à seriedade e sensibilidade pela forma como relata o tema do livro. A história de Nadar no Escuro resume-se a uma frase: "Uma história inesquecível sobre o prazer e a privação. Dois jovens vivem um verão irrepetível, descobrindo a paixão e uma certa liberdade. Com o fim da época estival chega o escrutínio, a intolerância e a censura. Dilacerados pelas suas escolhas, têm de decidir qual o futuro que desejam."
Jedrowski regressa aos anos 1980 neste romance que se situa no outro lado da Cortina de Ferro, recriando a vida na Polónia, um país católico e ainda comunista, escolhendo dois rapazes para construir uma história que ainda hoje continua em muito proibida neste país. O tema não é original, afinal o amor tem tido muitos livros, mas neste o autor traz uma "aventura" pessoal que tem muito também de análise social perante uma Europa tão ambivalente e que permite rever uma época que, não estando assim tão distante, é dominado por uma riqueza de injustiças e de proibições que o leitor mais ocidental parece desconhecer. Escrito por um alemão, respira Polónia em cada página.
Nadar no Escuro
Tomasz Jedrowski
Editora Clube do Autor
237 páginas
Só a biografia da autora de Malina surpreende, pois Ingeborg Bachmann transpira de eventos que marcam quem escreve. Outros tempos, pode dizer-se, sobre esta filha de um apoiante do nacional-socialismo, que se formou em Filosofia com uma tese sobre Heidegger, estudou Direito, Psicologia e Filologia Alemã, e que uma carreira literária a atirou para outros campos e feito parte do Gruppe 47 - com Paul Celan, Heinrich Böll e Günter Grass, entre outros. Antes deste romance agora editado em Portugal, Bachmann teve experiências poéticas e ensaísticas premiadas, mas é a excecional narrativa deste volume que surpreende logo desde o início. Colocado num tempo presente - o da década de 1970 -, a autora começa com o elenco de personagens sob uma forma teatral, em que se destaca a protagonista que mantém uma relação simultânea com dois homens em tudo diferentes um do outro. A ação insere-se no pós-Segunda Guerra Mundial, com um foco grande nas atrocidades nazis e a impossibilidade do esquecimento. Após o desenvolvimento da vivência com os amantes Malina e Ivan, a narrativa regressa às memórias do conflito que dividiu a História do século XX e no final descreve-se o apagamento da narradora por um dos homens. Um dos pontos fulcrais de Malina é a demonstração da violência, que Bachmann exibiu com destreza e horror antes de morrer num incêndio provocado por um cigarro de um maço de Gauloise não apagado.
Malina
Ingeborg Bachmann
Editora Antógona
312 páginas
Entre os melhores livros de viagens está o de Pier Paolo Pasolini, O Odor da Índia. Também um dos mais ignorados pela tradução portuguesa, questão resolvida recentemente ao integrar a coleção deste género literário e que António Araújo coordena. Recorda este responsável que o cineasta escreveu este conjunto de relatos - de uma harmonia impecável - numa viagem que fez àquele país na companhia de Elsa Morante e de Alberto Moravia e da qual o aroma constante nas suas deambulações se tornou o título deste livro. Acrescenta que estas páginas não dão soluções ao problema da fome e da degradação da vida de milhões de pessoas e que essa questão está presente em muito do que Pasolini regista por escrito e que é, diz, um "testemunho olfativo, político, espiritual e estético".
O retrato pretende ser uma descrição do que Pasolini observa e lhe é impossível deixar por comentar: "É quase meia-noite. O Taj Mahal tem o aspeto de um mercado a fechar." Explica como gosta de conhecer: "Tinha vontade de estar sozinho, porque só perdido, calado, a pé, consigo reconhecer as coisas." Ouviu dizer: "Tanto caminho ainda está por fazer! As nossas aldeias são construídas com lama e esterco de vaca." Exclama: "Não escondo a minha atração por estas cidades mortas e intactas, isto é, pelas arquiteturas puras." Confessa perante o que descobre: "Não é o momento de ir dormir." Conclui: "Enquanto o burguês italiano, com a sua televisão e as suas revistas ilustradas, é um desconhecido provinciano, ele está inexprimivelmente ligado às massas camponesas subdesenvolvidas de África, do Médio Oriente e da Índia." Uma leitura para umas férias com outro sentido...
O Odor da Índia
Pier Paolo Pasolini
Editora Desassossego
159 páginas