Sérgio Godinho acaba de lançar o seu terceiro romance.
Sérgio Godinho acaba de lançar o seu terceiro romance.Rita Chantre / Global Imagens

Sérgio Godinho: "Acho que há uma certa desconfiança por estar a tocar numa área diferente da música”

A escrita de romances é uma espécie de segunda vida para Sérgio Godinho. Há dez anos que se dedica, para além da música, à publicação de livros. O terceiro, Vida e Morte nas Cidades Geminadas, acaba de ser lançado.
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Num início de tarde, fomos ao encontro de Sérgio Godinho, figura incontornável da cultura portuguesa na música e, nos últimos dez anos, também na escrita narrativa com a publicação frequente de romances - já são três. Recebidos em sua casa, numa sala com um piano encostado à parede, livros e mais livros em estantes e nas mesas de apoio, falou-se sobre o seu novo romance, com a música como banda sonora da conversa.

Como é que surgiu esta vontade de escrever romances e, com isso, a vontade para este terceiro livro?
Desde há um tempo, e isso paralelamente com a atividade musical, surgiu esta vontade, uma quase urgência, de trabalhar na ficção narrativa. No fim de contas as minhas canções têm esboços de narrativas e têm muitas personagens com situações que são metanarrativas. Sempre tive esse impulso criativo, felizmente. Não quer dizer que esteja sempre a compor ou a criar, mas se estou muito tempo sem o fazer, começo a ficar impaciente. Portanto, comecei a praticar com contos (VidaDupla, de 2014) que começaram a surgir quase inesperadamente, um após o outro, e a certa altura senti que estava a encontrar uma voz poética e narrativa, uma voz que tinha consistência. E, depois isso, prolongou-se para o desejo de fazer alguma coisa com mais fulgor. O primeiro romance, Coração Mais Que Perfeito (2017), mal o terminei comecei a ter ideias para o segundo, Estocolmo (2019). Este terceiro livro, apesar de ter começado logo a ser pensado, teve uma gestação mais lenta. Apanhou a pandemia e, ao contrário do que muitos diziam, o confinamento não serviu para escrever, sobretudo aquele primeiro confinamento que foi um bombardeamento de novos conceitos, uma nova realidade. Não é por acaso que fiz uma canção chamada O Novo Normal, que refletia sobre esses novos conceitos, principalmente o conceito do novo normal. E, com isso, este romance ficou um bocado interrompido. Isso não foi mau porque quando voltei tive um olhar mais distanciado e repensei situações, fiz revisões, correções e inflexões de rumo. Quando se está a escrever uma história longa, com várias personagens, elas, a certa altura, começam a tomar vida própria. Isto é quase um cliché, dizer que são os personagens que escrevem pelo escritor, mas é uma metáfora real, porque a certa altura as personagem perguntam: ‘E agora, o que é que eu faço?’ E entra aí muito a ética, os nossos valores. Não quer isto dizer que as personagens têm exatamente os valores de quem escreve. As pessoas podem ser bem divergentes daquilo que escrevem, no entanto, têm de ter uma consistência própria e têm de crescer por si, ter um corpo. E acho que foi isso que aconteceu.


Havia a vontade de escrever uma história de amor neste novo livro?
Já tinha escrito histórias de amor, quer no Coração Mais Que Perfeito, quer no Estocolmo. Neste livro conto a história de gente muito nova, na casa dos 20 anos, e como ponto de partida peguei no conceito das cidades geminadas.


E, para isso, escolheu duas cidades, uma em Portugal e outra num país que conhece bem: França.
Escolhi Guimarães, que me é muito familiar. Sou do Porto, mas digo sempre também que sou um bocado minhoto, porque conheço o Minho muito bem. Guimarães, Viana de Castelo, Braga, Barcelos, tudo isso me é muito familiar. Há por lá uma maneira, de certo modo, ligeira, entre aspas, de ver a vida. E achei piada ao conceito das cidades geminadas, que as une.


E, logo no início do livro, faz referência a esse conceito...
Exatamente. Na primeira página, mas escrito de uma maneira satírica. Geralmente as cidades geminadas têm de ter o mesmo número de habitantes, mas isso não chega, há algo de aleatório. Escolhi uma cidade francesa chamada Compiègne, que está geminada com Guimarães, a 90 quilómetros de Paris, e para onde uma rapariga vimaranense emigra, ainda adolescente, com os seus pais. E depois, por lá, conhece um rapaz francês chamado Cédric. Essa rapariga chama-se Amália e, por acaso, tem o apelido do pai, Rodrigues. Além de que ela, embora de maneira amadora, tem jeito para o fado. Ela tira um Curso de Hotelaria e regressa a Guimarães para gerir um hotel. O rapaz que ela conhece, o Cédric, trabalha numa morgue e, embora sendo muito jovem, é alguém que pensa muito sobre a vida e o que se deixa no mundo depois de morrer. E depois há uma história de amor. Ah, e eles são, ainda por cima, Gémeos de signo, nascidos no mesmo dia do mesmo ano, são uma espécie de falsos gémeos. Há ali uma série de consonâncias e coincidências. E gostei muito de jogar com essas circunstâncias, essas coincidências e esses limites. E foi assim que o livro foi crescendo. É uma história de amor muito forte.


Porquê escolheu uma cidade francesa?
Começou assim... acho que foi como consequência desse conceito das cidades geminadas. E também porque vivi cinco anos em Paris. Saí de Portugal ainda legalmente, em 1965, tinha 20 anos, estive dois anos a estudar Psicologia em Genebra, na Suíça. Depois deixei os estudos universitários e tornei-me um vagabundo existencial. Andei à boleia pela Europa, trabalhei na cozinha de um barco holandês, atravessei o oceano até às Caraíbas, passando pelos Açores. Depois, no final de 1967, por fim, aterrei, entre aspas em Paris. Digo entre aspas porque fui de comboio. E lá conheci o José Mário Branco, o Luís Cília, outros portugueses menos conhecidos. Alguns já morreram. Vai morrendo muita gente na minha idade...

E depois  há o Maio de 68...
Quando o Maio de 68 aconteceu eu estava em Paris e vivi aquilo por dentro. Dormi várias noites na [Universidade de] Sorbonne, apanhei com gás lacrimogéneo, ocupámos a casa de estudantes portugueses, na Cidade Universitária, eu e muitos outros. Mas são outras vidas.

Que são um manancial para vários romances no futuro...
Ah, mas ainda vivi mais vidas. Estive no Brasil, onde fui preso. Aliás, vou escrever sobre as minhas duas prisões no Brasil, mas isso é outro assunto, para o futuro. E quando se deu o 25 de Abril estava em Vancouver, no Canadá. Regressei a Portugal com muitas experiências e vontade de criar. Já tinha feito dois discos, em Paris. De facto, o segundo já não vivia em Paris, estava a viver em Amesterdão, mas fui gravá-lo a França.


Este novo livro tem alguma coisa de autobiográfico?
Não. Acho que os livros incluem sempre coisas que pensamos, mas também há muitas coisas meramente imaginadas. Mesmo nas minhas canções, não existe uma componente muito autobiográfica. Não quer dizer que não tenha partido de experiências reais, posso dizer que a canção O Primeiro Dia  fala de uma rutura e de uma recomposição de si mesmo, porque existiu mesmo uma rutura. As duas canções que eu fiz sobre o Porto, o Porto,Porto e depois o Porto Aqui Tão Perto, falam de personagens, de lugares, etc., mas foi uma maneira de me reencontrar com o meu passado e, enquanto vivia no estrangeiro, uma forma de não esquecer esse meu passado e a minha língua. Isso foi muito importante. O facto de eu manejar, e penso que bem, a minha língua foi também uma maneira de não perder algo que me era essencial. Até comecei a escrever em francês, porque na altura não conseguia encontrar uma voz própria em português. Mas quando, de repente, isso aconteceu, senti que precisava disso para não perder a minha identidade, através da língua portuguesa.


O processo criativo, quando se senta para escrever um livro, é muito diferente de quando escreve um guião, uma peça de teatro, ou uma música?
É diferente porque as canções são, desde logo, a conjunção de duas formas de expressão e têm uma componente técnica bastante grande. Há a música e as palavras que estão em rima. No fluxo narrativo é uma coisa de continuidade, o que não acontece nas canções, que são muito fracionadas e que são mais um trabalho de carpintaria. Na escrita o processo é mais contínuo. Descobri isso com muito prazer, porque não tinha o hábito de escrever hoje e depois continuar no dia seguinte e ter vontade de o fazer. Não que trabalhe muitas horas por dia, nem sequer todos os dias, mas quando estou embrenhado num trabalho, como este romance, escrevo dias sucessivos. E depois olho para o que faço. Por vezes acabamos de escrever e há uma tendência para acharmos que está muito bom, e que no mínimo é um Nobel [risos], estou a brincar, nunca pensei nisso, mas no dia seguinte revejo e penso que, afinal, aquilo tem de ser melhorado. E é bom que seja assim. Já tinha escrito um livro infantojuvenil chamado O Pequeno Livro dos Medos (2009), de que gosto muito, mas é outro tipo de escrita. Posso dizer que escrever é quase como uma segunda vida, mas as canções e a música continuam a ser muito importantes para mim, sobretudo porque tenho um grande prazer nos palcos.


Como escritor de narrativa, nota que a sua escrita foi mudando ao longo destes três romances?
Acho que no fundamental não mudou nada. Descobri uma certa voz poética e narrativa que tem uma coerência e que encontrou um estilo próprio. Agora, claro, procuro ter rigor nisso, procuro não ser auto condescendente... mas acho que não mudou nada.


E não se sente mais exposto numa área onde é menos reconhecido?
Acho que há uma certa desconfiança por estar a tocar numa área diferente da música. Sei que sou julgado pelas canções, sei que tenho coisas boas, e não vale a pena falsa modéstia, mas isso não me tira a vontade de continuar a escrever. E, até ver, a minha editora tem acolhido muito bem as coisas que escrevo. Ainda antes deste romance, publiquei um livro com poemas e fotos que tirei com o smartphone e uma máquina compacta. Chama-se Palavras São Imagens São Palavras (2021). Uma espécie de interação entre fotografias e poemas. E em alguns casos os poemas surgiram da imagem. De resto há uma espécie de correspondência clara entre este esses dois meios de expressão, tal como faço com as letras e as músicas.


A sociedade lida bem com essa criatividade multifacetada?
Não lida. E até nas canções sinto isso. Há quem diga que só faço canções de intervenção...


... e sei que não gosta do termo canção de intervenção...
Acho restritivo. Intervenção é muita coisa. Não quer dizer que não faça canções com um teor sociopolítico, mas também faço canções de todo o género e que misturam o lado social, político e pessoal.

Ainda na música, tem um novo projeto, o Liberdade 25, que são concertos com várias datas já agendas, entre as quais nos coliseus de Lisboa e do Porto.
Tenho sempre espetáculos perto do 25 de Abril ou em redor da data. Mas este ano, com a efeméride dos 50 anos de Abril, tenho tido bastantes convites. Este espetáculo tem canções a que mudámos os arranjos e algumas coisas novas. E convidei um grupo vocal que já tocou comigo, o Canto de Nono, e a Garota Não.


Estamos à beira de eleições legislativas, como é que olha para a situação do país?
Vivemos tempos estranhos, interna e externamente, mas se calhar os tempos sempre estiveram estranhos. Somos um país extremamente imperfeito em muitos setores. E parece que há coisas que emperram e que já deviam ser mais ágeis. Desde há anos que é absolutamente indispensável que todos os portugueses tenham um médico de família, o que, no fim de contas, é uma consequência do Serviço Nacional de Saúde, mas atualmente temos mais de um milhão e meio de pessoas sem médico de família. Isso é uma constatação de falência ou, pelo menos, de insuficiência. E há que trabalhar em todos esses aspetos. A Justiça, por exemplo, é outro setor que tem muito a ser trabalhado. Portanto, vivemos num país que tem uma democracia sim, mas uma democracia muito imperfeita. Mas também não gosto daquela conversa de que isto já nem é democracia. Claro que é! Simplesmente é muito imperfeita. Tanto mais que atualmente temos ameaças de extrema-direita tanto cá, como noutros países da Europa. E mais longe, na América, quando se pensa que o Trump pode ser reeleito é de arrepiar. E para além das guerras que decorrem...


A geração que fez o 25 de Abril imaginavam um país diferente, 50 anos depois?
Não faço esse tipo de projeção. Vai-se vivendo o presente, esperando que o futuro seja um bocado melhor. As utopias não são realizáveis. Temos, sim, de estar um passo à frente.


A música pode ter o papel de alertar consciências?
Tem esse papel, que pode ajudar a consciência, mas não é fulcral. Nunca sobrevalorizo a música como papel transformador. Pode ser que, num determinado momento, uma ou outra canção o tenha, como já tiveram, mas não é por si que as coisas mudam. Isso acontece por um conjunto de circunstâncias e com pessoas com objetivos comuns.

Vida e Morte nas Cidades Geminadas

Sérgio GodinhoEditora Quetzal

268 páginas

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