Ser palhaço "não é vestires um disfarce, é despires-te da tua carapaça"
Existem para lá do nariz vermelho, sobrevivem fora das tendas de circo e sabem chorar. No 5.º Encontro Internacional de Palhaços, o DN falou com dois palhaços e um ator que aprendeu a sê-lo.
Liberdade e humanidade. São estas as duas palavras que Pedro Correia associa imediatamente à profissão que exerce. Há 20 anos que o vilacondense é palhaço e há cinco que organiza o Encontro Internacional de Palhaços, um festival onde os artistas podem apresentar o seu trabalho, livre dos clichés que o associam às festas de aniversários de crianças.
De 12 a 14 de Outubro, palhaços de várias partes do mundo - desde França até ao Canadá - juntaram-se em Vila do Conde, para conviver, refletir, trocar experiências. Tom Roos foi um dos que lá esteve. O artista belga tem 64 anos e há 44 que é palhaço. Mas nem por isso se parece com um. No início da carreira, usava a maquilhagem, o nariz vermelho, os sapatos longos e atuava para crianças. Hoje, já mais focado em criar para adultos, está despido de caracterização. "O ser humano normal pode ser muito ridículo. Não precisas de te disfarçar para sê-lo", explica.
Estudou arqueologia mas, após os estudos, viu-se sem trabalho. Então foi viajar e, no sul de França, deparou-se com um workshop de três semanas de circo e teatro de rua. Apaixonou-se. Quando voltou para Ghent, a sua cidade-natal, começou a atuar todos os dias na rua. E não parou até hoje - "Para mim, o clowning é a coisa mais honesta de se fazer. Quando representas, dás muito de ti à personagem, mas quando és palhaço, vem tudo das profundezas de ti. Não é vestires um disfarce, é despires-te da tua carapaça."
A maioria do trabalho que fez como palhaço, fê-lo em duo, acompanhado por Philippe De Maertelaere e o seu cão. "WurreWurre" era o nome do grupo que, nas palavras de Tom, "era muito mau, ia contra todas as regras, mas tinha muita presença". O amigo reformou-se, Tom quis continuar. E, atualmente, faz parte de uma associação que faz visitas a casas de idosos que já não conseguem comunicar normalmente: "O que fazemos é tentar encontrar outro modo de comunicação, tentamos encontrar a pequena chave que abre a porta do contacto, mesmo que as pessoas não consigam falar."
Para além disso, ensina, apesar de acreditar que não há uma forma certa ou errada de se ser palhaço: "O que faço é ver o que cada um tem dentro de si e puxá-lo cá para fora. Quando crescemos, aprendemos a comportarmo-nos, ouvimos "Não sejas tonto, não faças isso, não faças aquilo". E acabamos todos a ser adultos sérios, com medo do ridículo. Nós queremos esquecer tudo isso. Podes ser tu mesmo, frágil, estúpido, ridículo." No final deste mês, vai dar um workshop chamado "O Clown e as suas emoções", na Associação Cultural Porto de Artes, que quer mostrar que o palhaço existe para lá do riso, da felicidade, e persiste no medo, na raiva, no amor, na tristeza.
"O ator trabalha com sentimentos, mas o palhaço tem-nos à flor da pele"
Fernando Jorge Lopes não é palhaço de profissão, é ator. Mas uma das características da sua companhia, o Teatro Extremo, é trabalhar com criadores com linguagens muito distintas entre si, para os "pôr à prova enquanto atores", explica. E, por isso, neste domingo, sob a batuta do palhaço belga Joseph Collard, que trabalha com o Cirque du Soleil, os atores fizeram-se palhaços. Não foi fácil, conta, entre risos: "A meio do processo estávamos todos perdidos. Não sabíamos se estávamos a acertar ou não, se estávamos a entender o que ele nos estava a pedir. É um processo muito diferente, tem muitas idiossincrasias."
O "Mythos", que encerrou o 5.º Encontro Internacional de Palhaços, acabou por correr tão bem que a companhia já tem um outro espetáculo de clowning planeado daqui a dois ou três anos. Para Fernando, vestir a pele de palhaço "é uma experiência fundamental" para qualquer ator - "O ator trabalha com sentimentos, mas o palhaço tem-nos à flor da pele. Ele precisa desses sentimentos e precisa de os despoletar. E é toda uma nova aprendizagem ao nível dos tempos, da postura e da comunicação com o público."
Foi esse mesmo mundo que fascinou Pedro Correia desde novo. O vilacondense começou no teatro, interessou-se pelo Novo Circo e, tal como Tom, mergulhou em formações em várias partes do mundo com outros artistas. Hoje, faz parte da companhia "Nuvem Voadora", faz espetáculos a solo e, há dias, regressou de um projecto na Palestina - há uma semana, os Irmãos Esferovite, de que Pedro faz parte, foram a Nablus, a convite da associação galega "Pallasos en Rebeldía", que realiza festivais de circo, palhaços e risoterapia em sítios precários, sob tensão política. Foi uma "experiência marcante", "não só na carreira, mas na vida" de Pedro. "Poder levar sorrisos àquelas pessoas, àquelas crianças, que estão num sofrimento muito grande é um privilégio. É transformador para mim e para os outros", confessa.
Os vilacondenses já lá tinham estado em 2011, naquele que foi o primeiro festival de palhaços realizado no mundo árabe. Deixaram lá amigos e decidiram voltar. Encontraram uma região muito militarizada sob controlo apertado, repleta de muros e checkpoints. Estiveram em várias escolas e aldeias e deram a conhecer um novo mundo: "Uma coisa muito interessante é que, em alguns sítios, as crianças ou adultos nunca tinham visto um espetáculo - nem de palhaços, nem de teatro. Por isso, não sabiam muito bem como se comportar, qual era o timing de bater as palmas e assim. Mas fomos sempre recebidos com um grande sorriso, com muita hospitalidade."
Apostar na formação, desconstruir preconceitos
Enquanto artista, Pedro admite que não é "muito fácil" viver da profissão em Portugal sem enveredar por trabalhos mais comerciais, como as presenças nas festas de anos, nos shoppings, nas feiras medievais. Mas o número crescente de festivais de teatro de rua está a mudar, aos bocadinhos, o panorama. E está também a ajudar a desconstruir o preconceito e a falta de estatuto da arte. "Ainda hoje, chegas a um teatro, explicas que precisas de algumas condições especiais e o que te dizem é "Para que é que um palhaço precisa disso?"", conta.
A profissão também está cada vez mais popular. O artista sente "um grande interesse por parte dos jovens que estudam teatro, que quando vêm estes espetáculos de clowning ficam muito curiosos, perguntam onde há workshops". De realçar que, no encontro deste ano, o workshop intensivo de 12 horas de Anna de Lirium, palhaça austríaca, teve lotação esgotada.
No entanto, apesar de reconhecer que as recentes apostas na formação de artistas circenses como positivas - como a criação do Instituto Nacional de Artes do Circo e de um curso profissional da área na Academia Contemporânea do Espectáculo - Pedro acredita que "a formação ainda está muito fragilizada e precisa de mais investimento". Mas não tem dúvidas de que "as coisas estão radicalmente a mudar para melhor" - "Este ano, pela primeira vez, o Estado abriu bolsas de apoio para o circo, para o teatro de rua. E é muito bom, porque podes ter financiamento para a tua criação." E conclui: "Estamos um momento de crescimento, transformação, de se mexer as águas, fazer coisas, estabelecer e criar bases. Estou muito esperançoso quanto ao futuro."