Em março assinalou-se o centenário de Dirk Bogarde (1921-1999) e o cinquentenário de Morte em Veneza, de Luchino Visconti, o filme adaptado da novela de Thomas Mann que valeu a Bogarde um dos seus papéis mais célebres. É a propósito da primeira efeméride que a Cinemateca dedica agora, na programação de outubro, um ciclo a este ator cujo perfil singular marcou o cinema britânico do pós-Segunda Guerra Mundial, definindo um percurso carregado de "sombras." Que sombras são essas? Talvez se possa começar por referir a sua passagem pela guerra, enquanto oficial do exército britânico, experiência da qual guardou uma visão da humanidade que, por certo, lhe permitiu mergulhar mais fundo na expressão obscura de algumas personagens. Mas foi sobretudo a sua homossexualidade, nunca assumida publicamente (e Bogarde escreveu vários volumes de autobiografia, controlando em permanência a mediatização dos detalhes da sua vida privada), que lhe deu uma outra camada..Dito isto, a famosa personagem do compositor Gustav von Aschenbach de Morte em Veneza (filme que integra o ciclo) surge, sem espanto, na sequência de um certo tipo de papéis que Dirk Bogarde foi fazendo a partir de determinada altura. Este homem de meia-idade, que segue para Veneza à procura de repouso e encontra, para além da peste, a encarnação do ideal da beleza num jovem chamado Tadzio (Björn Andrésen), reflete a ambiguidade do próprio Bogarde, aqui na pele de alguém obsessivamente atraído pelo belo, mas que luta para o manter à distância de uma quimera. A leitura erótica, implícita nesse confronto entre a emoção estética e a mortalidade, tal como Visconti a concebeu, tem em Bogarde o seu grande intérprete..Mas nem sempre a agulha esteve voltada para papéis tão complexos. O início da carreira deste ator nascido em Londres está mais conotado com a popularidade de uma estrela romântica, relativamente convencional, que animava as bilheteiras da Grã-Bretanha sem dar muitas nuances de personalidade. E, no entanto, ainda nesses anos 1950 é possível encontrar um ou outro filme que explora uma certa escuridão em Bogarde. É através desses que o presente ciclo fixa uma essência do ator, trazendo ao grande ecrã títulos como A Lâmpada Azul (1950), de Basil Dearden, uma produção que capta o fôlego das ruas e dos bairros proletários - muito antes da corrente do realismo britânico -, com um jovem franzino Bogarde a interpretar um criminoso do submundo de Londres (filme nunca antes apresentado na Cinemateca), e A Fera Adormecida (1954), primeira de várias colaborações com o realizador americano exilado Joseph Losey, em que Bogarde, no papel de um assaltante que fica cativo dentro da casa de um psiquiatra, se envolve com a esposa deste - há uma cena em que ela, de gravata, vestindo calças de equitação, faz o gesto de quem lhe vai bater e diz: "Quem me dera ser um homem." Acabam por se beijar. Mas é nesse jogo implícito da momentânea pose masculina dela que Losey mostra a sua aptidão para trabalhar a ambiguidade do ator..Algo que ficou ainda mais explícito, e numa escala de maior sugestão, em O Criado (1963), outro dos papéis icónicos do percurso de Bogarde, enquanto servente que acaba por dominar o seu jovem patrão aristocrata numa indefinida linguagem sexual... Do leque de filmes que fez com Losey, será também exibido por estes dias King & Country (1964), libelo contra as instituições militares, em que Bogarde assume a voz do advogado de defesa de um soldado desertor..Por essa altura, nos anos 1960, o ator já escolhia a dedo as personagens que lhe interessavam representar na tela. Na verdade, a escolha era feita também pelo manager e companheiro Anthony Forwood (1915-1988), que deixou a sua própria carreira de ator para se dedicar exclusivamente a Dirk Bogarde. Viveram juntos quatro décadas, até à morte de Forwood, sob um eterno pretexto profissional, aos olhos do público. E aquilo que parece um mistério da vida íntima - tão bem gerido que Bogarde nem à irmã, com quem fazia férias, verbalizou a natureza da relação com Forwood - floresceu nos filmes..Com efeito, Victim (1961), mais uma vez assinado por Basil Dearden, foi o filme que fez Bogarde abraçar o "perigo", através da ficção, ao vestir a pele de um advogado, Melville Farr, envolvido na investigação de uma quadrilha que chantageia homossexuais, sendo a personagem também homossexual... Um thriller realizado ainda numa época em que a homossexualidade em Inglaterra era considerada uma ofensa passível de punição (só deixou de ser em 1967), e um papel recusado por atores como James Mason, que deu a Bogarde a oportunidade de ouro de se libertar diante da câmara - não em termos concretos, mas através da palavra. É vê-lo na comovente cena em que confessa à esposa o seu desejo por um jovem ("I wanted him!"), ou outra em que, perante um grupo de respeitáveis personalidades homossexuais, diz: "Eu posso partilhar dos vossos instintos, mas sempre lhes resisti." É como se, por um instante, não houvesse uma lente a separá-lo da realidade. Ali está Bogarde, sem medo, dentro do aquário que é a sétima arte e que lhe permite revelar-se mais do que numa autobiografia..Não será exagerado dizer que Victim, o filme que deu a ouvir pela primeira vez a palavra "homossexual" no cinema britânico, é o responsável por todas as escolhas de papéis menos unidimensionais do resto da carreira de Bogarde. Esses que vemos em filmes como os referidos Morte em Veneza, O Criado, mas igualmente A Segunda Dimensão (1977), de Rainer Werner Fassbinder, ou Daddy Nostalgie (1990), de Bertrand Tavernier, cineasta com quem Dirk adorou trabalhar nessa que seria a sua derradeira película. Disse sobre Tavernier que era um "génio" do cinema, ao lado do "imperador" Visconti e do "rei" Losey. E a verdade é que todos estes souberam, como poucos, desvelar Bogarde no ecrã.. O Criado, de Joseph Losey (dia 1, 15h30) A Lâmpada Azul, de Basil Dearden (dia 2, 15h30) Morte em Veneza, de Luchino Visconti (dia 2, 21h30) A Fera Adormecida, de Joseph Losey (dia 4, 15h30 | dia 7, 19h00) Perigo nas Sombras, de Michael Powell e Emeric Pressburger (dia 6, 15h30) Victim, de Basil Dearden (dia 8, 15h30) King & Country, de Joseph Losey (dia 11, 21h30 | dia 19, 15h30) Darling, de John Schlesinger (dia 12, 21h30 | dia 14, 15h30) Daddy Nostalgie, de Bertrand Tavernier (dia 13, 15h30) A Segunda Dimensão, de Rainer Werner Fassbinder (dia 15, 21h30).dnot@dn.pt