As Noites ainda Cheiram a Pólvora - prova de vida do cinema moçambicano.
As Noites ainda Cheiram a Pólvora - prova de vida do cinema moçambicano.

Segredos das chacinas da guerra contados pela avó

Boa surpresa vinda de Moçambique, As Noites ainda Cheiram a Pólvora, ensaio sobre os traumas da guerra civil. Inaldesso Cossa é o realizador que mostra hoje o filme no Forum. Na Berlinale Speciale, a câmara de Abel Ferra em Turn in The Wound aponta a Patti Smith e Zelensky com resultados mais do que duvidosos...
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Que cartão de visita este o de Inadelso Cossa, a longa-metragem moçambicana As Noites ainda Cheiram a Pólvora, visita à aldeia da avó, no mato, território repleto de massacres do mal. O cineasta e o seu assistente de som iluminam a noite. Põem a câmara na camada escura da noite e deixam-nos espreitar por feixes de luz, ao som do barulho da mata, com pássaros a cantar e silêncios misteriosos. É coisa de meter respeito.

As Noites ainda Cheiram a Pólvora é sobretudo essa descoberta pessoal das memórias dos massacres na região. A avó, já com sinais de Alzheimer, vai-lhe contando histórias desse período. Mas as palavras chegam de outra casas, de outros lugares desta povoação. Há também espetros de ruínas, retratos de jovens a preto  e branco na erva seca e imagens do processo desta recolha. Inadelso Cossa, a dada altura, diz-se confuso. Ouvimos testemunhos de um horror que passa por cabeças empaladas e relatos de esconderijos, vivências que não deixam esquecer o conflito entre a FRELIMO e a RENAMO.

A câmara encena algumas coisas, sobretudo um reencontro de um casal. História puxa história e dessa resenha do medo sobram outros episódios que evocam um inferno que não larga nesta paz quem foi vítima e agressor. Uma terra seca que agora tem crianças que não lidaram com os tempos das minas. O feito maior do filme é que se percebe que o título encerra a terrível verdade: ainda cheira a pólvora. O realizador tem uma noção geométrica de ordem de plano aterradora: nada está ao acaso entre esse espantar de espíritos de sombras e luz. Temos igualmente ângulos que parecem mensagens de fã a Pedro Costa, cineasta português que tem sido o maior porta-voz da comunidade de Cabo Verde na Grande Lisboa. Mas Inadelso não se fica pela limitação da referências, constrói essa sua tese muito particular de que “o cinema se faz de memória”. E se na composição do plano há algo extremamente cuidado, no tempo em que os diálogos são ditos também a montagem constrói uma ideia perene de rigor, condizente com a sugestão de que dos túmulos saem mensagens e que alguns vivos parecem fantasmas - e é nesses casos que a poeira ou a cacimba parece ter um efeito perturbador no espetador. 

As Noites Ainda Cheiram a Pólvora tem um lamento grave que se respeita e nos deixa em sentido. Para já, é perceber qual o festival português que se chega à frente para mostrar esta obra feita também com o apoio da produtora portuguesa Dupla Cena. O filme passa hoje no Forum, secção que tem sido o porto de abrigo dos cineastas mais livres.

Algo não vai bem com Ferrara

A música e a poesia de Patti Smith para sarar feridas das vítimas da guerra da Ucrânia.

Na Berlinale Speciale, passou entretanto Turn in The Wound, passo em falso (outro...) de Abel Ferrara, documentário que examina como a arte e a música podem ser fontes de inspiração para a guerra. O ponto de partida é uma performance de poesia e “spoken word” de Patti Smith intercalada com uma série de entrevistas na Ucrânia. De alguma maneira, sente-se que o cineasta de Maria Madalena está perdido e deslumbrado com o material que tem, um pouco como estava Sean Penn em Superpower, também mostrado neste festival o ano passado. Chega a dar a sensação que os relatos da miséria humana em tempo de guerra ainda constituem novidade neste engarrafamento de reportagens televisivas da resistência ucraniana face à invasão de Putin. A própria entrevista a Zelensky com três câmaras, uma delas o iPhone do realizador, e muitos desfoques, é de uma banalidade alarmante. Felizmente, ganhamos os momentos de Patti Smith, que logo no começo do filme resume o seu estado como artista. Ganha o cinema.

O EFM com boas novas portuguesas

Nas notícias do EFM (o Mercado Europeu do festival), salta à vista On Falling, de Laura Carreira, com Joana Santos, produção portuguesa da Bro, a produtora dos irmãos Patrocínio, que foi parar à Goodfelas, importante companhia de vendas internacional. Trata-se da história de uma emigrante portuguesa na Escócia a tentar ganhar a vida numa fábrica e a confrontar-se com a sua solidão. Esta é a primeira obra desta jovem cineasta portuense que estudou cinema em Edimburgo.

Também nas revistas diárias da indústria destaque para uma ficção-científica lusoespanhola, Artificial Justice, de Simon Casal. Uma história que imagina um sistema onde os juízes são substituídos por Inteligência Artificial. José Afonso Pimentel está no elenco e a Ukbar Filmes é a produtora nacional. Curiosamente, Pimentel está como protagonista em Matilha, série que está na Berlinale Series Market, um foco para as séries que cada vez ganha maior relevância no volume de negócios da Berlinale. 

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