"Se publicasse as memórias, certamente lá apareceria o Kurika como companheiro"
Esta poderia ser uma entrevista sobre a vida literária de Manuel Alegre ou sobre a sua visão da política nacional e não só. Mas acabou por ser uma conversa sobre Cão como nós, um livro editado em 2002, que vai na 30.ª edição, e que foi a forma que o dono encontrou para fazer luto por um animal que fazia tão parte da família que até ouviu alguns poemas em primeira mão.
Guarda a licença do Kurika e a trela. Isto é a prova de que passados 20 anos sobre a escrita do livro Cão como nós este é um cão que se mantém na memória da família?
É um cão de família. Aliás, quem guardou isto tudo foi a minha mulher. Acho que este livro é, sobretudo, um livro de afetos e que o cão era um mediador desses afetos e, por vezes, também das tensões que existiam dentro da família.
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O cão fazia parte da família?
Este cão fazia parte da família. Unia a família, às vezes criava tensões inesperadas dentro da família, porque era um cão com mau feitio, e se calhar alguns de nós também não têm um feitio excelente. Mas era um cão que fazia parte da família e, na verdade, escrevi este livro nem foi para o publicar. Foi um exercício de luto quando o cão morreu, escrevi este livro como uma libertação. Depois, mostrei-o ao meu filho Francisco e ele disse-me que era um livro que ia tocar as pessoas e que seria um sucesso, mas eu não queria publicá-lo. O resto da família e alguns amigos viram o livro e acabou por ser publicado. De facto, foi um sucesso e ainda o é atualmente.
Esta edição agora publicada, com ilustrações de Bárbara Assis Pacheco, que assinala os 20 anos da primeira, em 2002 , mas há sucessivas edições e reedições...
Sim, esta é a trigésima, e parece-me que já há outra com outro formato.
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Quando a sua filha Joana nasce já o cão está em casa, certo?
Já .

A licença e a trela do Kurika.
© Gerardo Santos / Global Imagens
E que idade têm então os seus filhos Francisco e Afonso?
Os meus filhos deveriam ter à volta de sete/oito anos.
Portanto, o cão veio quando eles ainda eram crianças. Cresceram com o Kurika presente.
Sim, eram crianças, foi um cão da sua infância e até da muito pequena infância no caso da minha filha. E depois também na adolescência, sempre foi o companheiro de todos eles. Tínhamos um hábito familiar de aos sábados e domingos sairmos para o campo, para a pesca de achigãs, e levávamos o cão. Eles iam com o cão pelo campo fora a levantar caça, embora sem arma. O cão fazia parte de todas essas liturgias de família, de todas essas brincadeiras e, portanto, ficou na memória.
Há cães na família antes?
Não, nesta família não, mas na minha família sim, porque o meu pai era um grande caçador e sempre teve cães, mas nesta não, foi o primeiro cão.
E depois tiveram outros cães?
Não. O meu filho Afonso, que é o do meio, é um grande caçador e tem dois Pointer, sempre teve cães. Aliás, vive com os cães, ele é muito agarrado aos cães e os cães a ele, provavelmente, isso ficou-lhe do Kurika. E o Kurika tinha uma ligação especial a todos eles, mas ao Afonso de uma maneira diferente, talvez porque ele fosse o mais caçador de todos.
Percebia-se que o cão tinha preferências e relações diferentes com cada membro da família? Consigo, pelo que está no livro, já percebi que às vezes eram tensas.
Às vezes eram tensas, também porque nem sempre tinha paciência para o aturar. Este cão era muito afetivo e, por vezes, era chato porque queria sempre estar ao pé das pessoas. Por exemplo, se o deixávamos sozinho em casa punha-se a uivar ou então roía as coisas. Uma vez, roeu-me um casaco que tinha comprado há dois dias, estava pendurado e ele roeu-me o casaco. Mas ele sabia distinguir as funções de cada um dentro da família. Por exemplo, com a Mafalda, a minha mulher, era uma relação especial, porque era ela quem lhe dava de comer e quem tratava dele.
Chega a dizer no livro que era quase uma espécie de mãe dele.
Sim, era uma espécie de mãe dele. Aliás, há essa cena da praia. Ele sempre gostou de nadar connosco e brincar na Foz do Arelho, mas a partir de certa altura já não lhe apetecia tanto ir para a água fria. Então, quando a minha mulher se atirava à água, ele começava a ladrar, agarrava na toalha, e corria pela praia fora com a toalha nos dentes a chamá-la. Mas este livro foi um exercício de luto. Luto porque perdi o cão, sentia falta dele, fiquei de luto de facto. Normalmente, quando estava a escrever ali no escritório, ele sentava-se ao meu lado, às vezes resmungava e tal, mas estava ali. Estava habituado àquilo e senti aquela ausência. Aliás, muitas vezes falo numa ausência/presença, como se o cão ainda andasse por aí.
Então, vários livros seus dos anos 90 foram escritos com o Kurika ali ao lado sentado?
Sim, com o Kurika ali ao lado, sobretudo quando às vezes trabalhava a fazer a cópia ou a corrigir os livros, ele estava ao lado. E mais que isso, como assinala a Clara Rocha no prefácio, e eu também o digo no livro, quando às vezes estava a escrever poesia, acabava de escrever o poema e lia-lho. Ele ficava a olhar para mim, a música do poema dizia-lhe qualquer coisa. O raio do cão ficava ali, parado a olhar para mim, parecia que estava a ouvir e a gostar. De maneira que ele foi o primeiro ouvinte de alguns dos meus poemas.
Sei que o nome Kurika veio de um romance de Henrique Galvão e originalmente era nome de um leão.
Veio sim, foram o Francisco e o Afonso que lho deram. O cão não parece um leão, mas eles acharam um nome chamativo. Eles estavam fascinados com a história do Kurika e então chamaram Kurika ao cão.
Quando chamava o cão na rua ou na praia, as pessoas perguntavam-lhe de onde vinha aquele nome?
Perguntavam e nós explicávamos. Falávamos do Henrique Galvão e da história do leão Kurika . Mas depois, pelo menos no núcleo de pessoas com quem nos dávamos, a história já era conhecida.
Disse que o cão fazia parte da família, que criou laços de família, que consigo havia alguma tensão, e que a sua mulher era praticamente a mãe. Com os seus filhos era quase uma relação de irmãos?
Fraterna, de irmãos. Aliás, uma vez ele estava doente, teve um ataque aqui e nós estávamos a dar-lhe festas e o Afonso, muito comovido disse, "ele é meu irmão". E era uma relação de irmãos, assim como era com a minha filha.
E a sua filha ele viu-a bebé.
Com a minha filha ele era protetor, era a mais nova e ele era protetor dela. Às vezes quando chegávamos a um hotel em que íamos todos e ele também, ficava no quarto onde ficava a minha filha e ninguém lá podia entrar. Atirava-se imediatamente e ladrava. Uma vez, a minha mãe ainda era viva, estávamos num hotel das Caldas e a minha mãe foi ver como estava a Joana. O cão atirou-se. Depois, claro, arrependeu-se, mas era protetor.

Há também um episódio curioso que é uma tensão do Kurika exatamente com a sua mãe. Porque a sua mãe tinha a regra, quando iam a Águeda, que os cães não ficavam em casa, mas sim no canil dos cães de caça. E para o Kurika isso era uma despromoção inaceitável.
Ele não aceitava essa despromoção, não aceitava ser tratado como um cão, era mais isso. E, uma vez, a minha mãe teimou em pô-lo no sítio onde costumavam ficar os cães de caça do meu pai, mas ele ladrou tanto, tanto, tanto que o meu pai me disse que ou íamos buscar o cão para casa ou saía ele e ia para um hotel. E o cão ganhou, derrotou a minha mãe, o que não era uma tarefa nada fácil.
Essa sua experiência com o Kurika, que no seu caso até foi uma experiência de homem relativamente jovem, fá-lo pensar quando vê as pessoas tão agarradas atualmente aos cães e aos gatos? Percebe que um animal pode ser uma família para as pessoas, sobretudo mais velhas?
Sim, sobretudo para pessoas solitárias, pessoas idosas ou mesmo jovens sem família, sem ligações afetivas. Este cão foi um cão de família, todos nós fomos bastante ligados a ele, e ele também percebia isso e fazia parte dessa ligação afetiva.
Mas também há quem tenha um cão porque está sozinho.
Há pessoas que não têm mais nada, têm o cão ou o gato. Eu percebo, embora não seja uma relação tão saudável como penso que tínhamos com o Kurika e como o Afonso tem com os cães dele. Mas percebo que o cão passa a ser quase uma pessoa para essas pessoas que não têm mais nada.
E não estranha as pessoas falarem com os cães porque, como disse, o próprio Manuel lia-lhe os poemas.
Não, não estranho. Lia-lhe os poemas e às vezes falava com ele, brincávamos com ele e falávamos com ele. Aliás, há uma história que conto no livro, uma história da música - que é verdadeira -, que era a música do Albéniz. Púnhamos a música no gira-discos e o tipo, estivesse onde estivesse, vinha e ficava como que hipnotizado. Já falei disto a várias pessoas e é um fenómeno que ninguém me sabe explicar, mas quando chegava a uma certa parte da música, ele começava a uivar. Era um uivo que tanto podia ser de dor, de alegria, ou das duas coisas misturadas. Será que o som ou a melodia daquela música lhe reavivava uma qualquer memória genética? Será que o incomodava? Acho que não, porque ele tinha prazer, um prazer doloroso, mas tinha.
E era só com aquela música?
Era só com aquela música e sempre naquele sítio da música. Quando chegava a essa parte da música, ele uivava e ficava como que hipnotizado. Ficava estranho o cão, mas não sei explicar isso apesar da relação. Muitas vezes saia sozinho com ele e íamos à pesca ou à caça.
Mas Kurika não era um cão de caça, pelo menos no ativo...
Ele era um cão de caça, mas nessa altura os miúdos eram pequenos e também havia pouca caça, por isso, íamos mais à pesca. Embora o Afonso tivesse sempre aquela coisa da caça.
A raça dele era uma raça de caça?
Era de uma raça de caça. Épagneul Breton. E nós chegámos a experimentar na Foz do Arelho, na parte do monte onde tinha muitas perdizes, e ele ia às perdizes e matava-as.
Portanto, se ele pudesse ter sido um cão de caça em vez de cão de família seria um cão de caça nesse sentido original?
Seria um grande cão de caça, de certeza. Inclusive, de vez em quando, ele aparecia com uma perdiz na boca porque há bandos de perdizes que vivem nas falésias e não são caçadas. Ele andava por ali e, de vez em quando, aparecia com uma perdiz na boca ou com um coelho.
O instinto estava lá.
O instinto estava lá, foi pena, mas os miúdos eram pequenos e nem tinham licença para caçar. Eram novos de mais também e, além disso, foi um período de crise de caça, portanto, não nos dedicávamos como hoje fazemos. Mas muitas vezes, estando com o cão, e vendo a maneira como ele olhava para mim, ou resmungava, há um mistério nos animais. Os animais não riem e mesmo quando estão contentes, percebemos pela forma como eles exteriorizam e nos fazem festa. Mas há uma tristeza inultrapassável, há ali um mistério qualquer. Talvez seja o facto de não poderem falar, de não chegarem à fala, e tínhamos a sensação de que este cão não queria ser cão. Era um cão, que no fundo, não se submetia ao facto de não poder falar. Ele ladrava, que é uma forma de falar, e quando convivemos com um cão muito tempo sabemos que o seu ladrar tem vários sinais e várias falas.

Kurika e Manuel Alegre numa foto que a família guarda com carinho.
© Gerardo Santos / Global Imagens
Há uma parte do livro em que até um filho seu diz que o cão não fala como o Manuel, mas resmunga como o Manuel. É aquela ideia de que o cão pode apanhar tiques da pessoa, do dono?
Tinha alguns tiques, às vezes resmungava um bocado como eu, tinha tiques das pessoas.
Como é que este cão veio parar à família, recorda-se?
Foi um deputado do PCP, o Vidigal Amaro que era médico, que tinha um irmão que criava cães. A certa altura, os miúdos começaram a pedir um cão e falei-lhe nisso, porque ele fez parte comigo do Conselho da Europa. Perguntei-lhe se não me arranjava um cão e acabou por ser ele a arranjar-me o cão.
Esta é uma raça muito prestigiada?
Sim, e é uma raça de linha pura, muito perspicaz. São cães vaidosos, gostam de se exibir, de ser reconhecidos, e não aceitam a diferença ou estar sozinhos. Portanto, logo desde o princípio, quando íamos dormir e fechávamos o cão na cozinha, ele desatava a raspar a porta e era um grande sarilho convencê-lo que tinha de ficar ali, até porque não queríamos bater no cão, porque isso não é maneira de os educar. É tentar fazê-los compreender e eles acabam por compreender, mas era difícil e foi sempre assim quase até ao fim. Penso que ele durou 17 anos, o que é um pouco invulgar naquela raça, mas porque não nos queria abandonar. Ele já estava doente, mas não nos queria deixar e foi por isso que sempre durou tanto.
Há um momento que também me impressionou na leitura: quando o seu filho Francisco está em Timor em 1999 naquele momento complicado pós-referendo de independência e vocês estão cá à espera para saber notícias pelo telefone. E o cão estava ali curioso para saber se as coisas estavam bem.
O Francisco costumava telefonar a uma determinada hora, mas ele percebia pela reação da minha mulher e pela minha que era o Francisco ao telefone. Então, vinha a correr e ficava ali. No fundo, ele gostaria de falar ao telefone também ou, pelo menos, comunicar ao telefone com o Francisco. Às vezes víamo-nos aflitos, porque o Francisco esteve na UNAMET e debaixo de fogo.
O Francisco , então jovem diplomata, estava lá em missão quando as milícias não aceitam o referendo.
Exatamente, mas eu ouvia as armas ao fundo e víamo-nos preocupados. E o cão ficava ali, enquanto durasse o telefonema ele não saía dali, quase como se quisesse comunicar. E não estou a inventar, porque isto são coisas que nós percebemos. Era quase como se quisesse comunicar ele próprio com o Francisco e ele percebia que era o Francisco.
Depois da morte do Kurika não houve a tentação de ter outro cão?
A minha mulher não quer outro cão.
Não voltou a ter animais em casa?
Não, não voltei. Para efeitos de caça e de companhia tenho os cães do meu filho que são magníficos. Tivemos outro que morreu e também merecia um livro. Mas já escrevi um livro sobre um cão, não vou escrever mais porque é irrepetível. Mas também era um cão extraordinário, diferente, parecia um lord inglês.
Fala-se muito de o Manuel um dia publicar as suas memórias. São memórias em que toda a gente vai estar à espera de que fale da sua carreira de poeta, também de opositor a Salazar e depois da vida política pós-25 de Abril. O Kurika faria parte dessas memórias?
O Kurika faz parte da minha vida e das minhas memórias, vive na minha memória. Se publicasse as memórias, certamente lá apareceria o Kurika como companheiro.
leonidio.ferreira@dn.pt
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