"Se alguém permite a escravatura, não está a cumprir o seu papel como ser humano"

Colson Whitehead está prestes a publicar o segundo volume de uma trilogia sobre o Harlem, livros criminais, sublinha, e com personagens que são apolíticas. Mas dois dos livros anteriores, ambos premiados com o Pulitzer, tiveram como pano de fundo a escravatura e a discriminação racial no Sul dos Estados Unidos, temas históricos mas 100% políticos ainda hoje, numa América onde a questão racial se mantém, mesmo no pós-Obama. O escritor americano veio a Lisboa para o ciclo Meet the Author, da FLAD.

Quando Colson Whitehead diz, sentado num sofá na sede da FLAD em Lisboa, que "o meu livro favorito é sempre aquele em que estou a trabalhar no momento", sei que o foco da conversa devia ser o segundo volume de uma trilogia criminal que começou com Ao Ritmo do Harlem, o mais recente dos seus livros traduzidos para português. Mas é impossível não falar de A Estrada Subterrânea e de Rapazes de Nickel, dois livros extraordinários, que me deram a conhecer este americano, e que, goste ele ou não, se colam à sua figura, ou não tivessem sido premiados com o Pulitzer. O primeiro passa-se no século XIX, quando metade dos Estados Unidos convivia com a escravatura, o segundo já no século XX, com o "Sul Profundo" a fazer tudo para manter a separação entre as raças e de outra forma prosseguir a subjugação dos negros.

Pergunto, ainda com a memória bem viva da leitura de A Estrada Subterrânea, se foi propositado o haver quase sempre um lado humano mesmo nas personagens mais terríveis, como Ridgeway, o caçador de escravos foragidos, ou exibir as fragilidades e hesitações até dos que abominam a escravatura. Colson Whitehead responde: "Bom, isso é o que os torna a todos reais. De uma certa forma, o perseguidor de escravos tem de ser reconhecido como ser humano, de outra forma não estou a fazer o meu trabalho. E, por outro lado, entre os abolicionistas havia pessoas que trabalhavam ativamente para acabar com a escravatura, outras que pensavam que a escravatura era errada, mas não faziam nada. Depois, havia ainda aqueles que não pensavam sequer no assunto, viviam as suas próprias vidas, trabalhavam 14 horas por dia e a escravatura não era uma questão importante. Eu queria ter uma galeria grande de personagens, um abolicionista que fosse ativo; um que acreditava que a escravatura era um mal, mas que não fazia nada contra isso; a mulher na Carolina do Norte que acaba a ajudar a esconder escravos, mas não quer saber da causa para nada... Portanto, há diferentes tipos de pessoas e diferentes tipos de envolvimento com a escravatura e o livro é suficientemente grande para lá caberem todos esses tipos de personagens". E prossegue, teorizando sobre a complexidade do tema: "A relação entre donos e escravos era muito comum. Houve escravos que foram libertados depois da Guerra Civil que ficaram nas propriedades, pois não conheciam mais nada. Assim, começaram a trabalhar para os seus antigos donos, o que parece uma loucura, e havia proprietários de escravos que embora tivessem violado e torturado os seus escravos tinham uma escrava que governava a casa e de quem diziam coisas como "a Bessie é como uma mãe para mim, ela criou-me!". Obviamente que ela não era como uma mãe, mas eles tinham essa ideia irreconciliável. Da mesma forma que havia diferentes tipos de abolicionistas também havia diferentes tipos de proprietários de escravos".

Colson Whitehead foi o primeiro convidado do Meet the Author, um ciclo em que a FLAD se propõe trazer escritores americanos a Portugal e pô-los à conversa com os leitores. A sessão, moderada pela jornalista Isabel Lucas, do Público, estava agendada para o final da tarde do mesmo dia da minha entrevista. Foi um sucesso. Sala de conferências da FLAD cheia, com as inscrições (obrigatórias) fechadas dias antes. Com três livros editados em Portugal, todos pela Alfaguara, o vencedor dos dois Pulitzer tem por cá uma pequena legião de leitores fiéis. Como o próprio admite, alguns chegaram a ele graças ao prémio em duplicado. "É raro isso acontecer, eu tive muita sorte. Obviamente que quando comecei a escrever A Estrada Subterrânea não imaginava que iria ser traduzido em 40 línguas e claro que nunca imaginei receber dois Pulitzer. Portanto, as coisas correram-me bem depois de escrever há 25 anos, com altos e baixos. Estou a gostar muito do trabalho que tenho vindo a fazer nos últimos seis anos. Nem todos os meus livros irão ser recebidos da mesma maneira, isso faz parte, mas espero que mesmo quando as coisas não correrem assim tão bem, seja capaz de me dedicar ao trabalho com o mesmo empenho, ambição e dedicação. Receber a notícia de que se ganhou um Prémio Pulitzer é ótimo, mas o segundo veio durante a pandemia e recebi a notícia quando estava a fazer um teste para ver se estava infetado. No primeiro eu estava atento e com alguma esperança, mas no segundo tinha a certeza de que não havia hipótese de ganhar duas vezes quase de seguida. Depois, devido ao que estava a acontecer no mundo não consegui celebrar. Mas claro que é importante. Na América há pessoas que só leem dois romances por ano e esses dois serão os vencedores do Pulitzer, e claro que no resto do mundo se as pessoas souberem que o livro ganhou o Pulitzer ficam mais curiosas".

Logo no início da conversa, o escritor deixou bem claro que queria ser entrevistado sobre os livros e não sobre a sociedade americana ou a política do país. Quando comentei que há 20 anos tinha feito um Mestrado em Estudos Americanos com a tese centrada na comparação entre Colin Powell e Louis Farrakhan como modelos antagónicos para os afro-americanos, esclareceu-me de imediato que não iria comentar Barack Obama e muito menos Donald Trump. Tem sido uma posição sua, constante, a de recusar ser "um oráculo". Escrever um livro inspirado em Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, não lhe passa pela cabeça, assegura: "A história da vida dele é muito improvável e miraculosa, mas simplesmente não estou interessado em escrever sobre Obama, como também não estou interessado em escrever sobre o programa espacial..."

Colson Whitehead quer ser visto como um escritor americano, sem hifenizações, e esclarece que "escrevo mais sobre história americana do que sobre políticos e política. Quando falo da escravatura, ou de Jim Crow, estou a falar da América e do nosso sistema político de uma forma indireta, mas nunca me ocorreu escrever sobre um político". Relembra que não escreve sempre sobre temas afro-americanos, até tem um livro sobre zombies, Zone one, mas admite que o meio em que cresceu, o contexto em que vive, o influencia. "Sim. É a minha experiência de vida. Os escritores brancos também escrevem sobre ambientes de pessoas brancas... Quando um escritor branco escreve sobre personagens brancas não diz que é a sua experiência como branco", sublinha, com ironia.

Falemos de A Estrada Subterrânea uma vez mais, antes de nos centrarmos, merecidamente, no Ao ritmo do Harlem. Já várias vezes Colson Whitehead explicou que a ideia lhe veio da ilusão, em criança, de que o sistema de ajuda a escravos a fugir do Sul para Norte, para a parte dos Estados Unidos onde a escravatura não precisou da Guerra Civil de 1861-1865 para ser abolida, era de facto um caminho-de-ferro subterrâneo (The Underground Railroad é o título em inglês do livro). E daí o ponto de partida para o que podia ser apenas mais um livro sobre escravatura nos Estados Unidos, alguns célebres, como Raízes, de Alex Haley, ou Amada, de Tony Morrison, ambos Pulitzer, sendo que o conjunto da obra valeu a Morrison (que não rejeitava um papel político em defesa dos afro-americanos) o Nobel da Literatura. Podia, mas como o próprio autor admite, o realismo mágico latino-americano teve um papel, que não se repetiu noutras obras: "Por razões óbvias as minhas maiores influências são americanas e britânicas, mas, por exemplo, em A Estrada Subterrânea Gabriel Garcia Márquez e o realismo mágico estiveram muito presentes. Quando estava a escrever Os Rapazes de Nickel li várias novelas e contos de vários autores, bebi alguma coisa de todos. Eu já mudei muito de estilo e de estrutura e inspiro-me em escritores muito variados. O livro sobre Nova Iorque (The Colossus of New York) tem a influência de Allen Ginsberg. Portanto, sou tocado por escritores muito diferentes". Fico também a saber que Fernando Pessoa foi importante no início da sua carreira, por volta dos 20 anos.

A Estrada Subterrânea deu origem a uma série televisiva realizada por Barry Jenkins, que em Portugal pode ser vista na Amazon Prime Video. A personagem principal, Cora, fugitiva de uma plantação na Geórgia, é interpretada pela sul-africana Thuso Mbedu, que para quem leu o livro de Colson Whitehead de repente surge como uma inacreditável encarnação da escrava rebelde. O escritor, nascido em 1969 em Nova Iorque, numa família empresarial, e formado em Harvard, admite que antes de alcançar o sucesso não sabia grande coisa sobre as origens, até por falta de interesse, mas que depois do primeiro Pulitzer, houve quem fizesse a pesquisa e a comunicasse: "Um genealogista amador fez isso depois dos livros terem saído. A família do lado da minha mãe vem da Virgínia e eram pessoas livres que eram pregadores, comerciantes, etc. A minha família paterna vem da Florida e havia escravos entre eles". Falo do musical Hamilton, êxito da Broadway em que Lin-Manuel Miranda escolheu um elenco sobretudo de negros e portanto alguns dos pais fundadores dos Estados Unidos mudam de cor de pele, como Thomas Jefferson, que tinha escravos e foi pai de inúmeros mulatos com Sally Hemings, e especulo se a história não teria sido diferente se houvesse afro-americanos entre os líderes de 1776. "Sim, mas não havia políticos negros nessa época. E do meu ponto de vista se alguém permite a escravatura, não está a cumprir o seu papel como ser humano. Tal como toda a gente, eles eram pessoas complicadas, mas falharam porque deixaram que a escravatura continuasse no novo país", afirma Colson Whitehead, mesmo quando sublinho nomes como John Adams e John Quincy Adams, segundo e sexto presidentes, que nunca foram proprietários de escravos e eram abolicionistas.

Tal como o essencial de Os Rapazes de Nickel (a tradução do título faz perder um dos sentidos, pois Nickel, nome de um reformatório quer dizer níquel, metal e sinónimo de moeda de cinco cêntimos de dólar, quase meio tostão furado), Ao Ritmo do Harlem (Harlem Shuffle) passa-se no fim da década de 1950, início da década de 1960. Foram tempos difíceis na América, mas ao mesmo tempo com algumas boas notícias - foi a época das presidências reformistas de John Kennedy e Lyndon Johnson, da luta de Martin Luther King, Jr. em nome dos negros americanos, da conquista dos direitos civis. Colson Whitehead admite que o Harlem já foi a capital negra da América: "sim, nos anos de 1920 houve uma grande migração de pessoas que vinham do sul para evitarem a discriminação sulista e rumavam a Nova Iorque para uma nova vida. Durante décadas foi o centro da América negra. Sobretudo em termos culturais. Os artistas iam para lá, os políticos começavam lá. Agora não há nenhum centro da América negra". Porém, faz questão de sublinhar, novamente a recusa de uma motivação política por trás das suas escolhas, "eu escrevo sobre o Harlem porque sou de lá, sou de Nova Iorque. Se vou escrever um romance sobre os negros, faz mais sentido para mim que seja sobre Nova Iorque , sobretudo sobre Harlem. Podia ter sido Brooklyn, podia ter sido Harlem, eu sou de Manhattan, portanto a escolha. Há quem diga que o Harlem é ainda especial, mas aquela foi de facto uma época importante na América, com grandes coisas a acontecerem como o movimento pelos direitos civis e a promessa de JFK de uma América nova, por isso é claro que é essa a base destes personagens".

A época dos dois livros seguintes desta trilogia do Harlem, conta o autor, "irão ser os anos 1970, entre 1971 e 1976. O ano de 1976 foi o do bicentenário, portanto com muitas declarações sobre a independência, o poder do imobiliário, etc., portanto vão aparecer decididamente algumas dessas coisas no novo livro. O livro terá novamente três histórias, uma delas terá que ver com a corrupção na cidade, outra com a política e a terceira será mais divertida". Em Ao Ritmo do Harlem, onde brilha Carney, as personagens são apolíticas, insiste Whitehead. Veremos no livro que se segue.

E quem se segue no Meet the Author é a 20 de outubro Joshua Yaffa, correspondente da New Yorker em Moscovo e agora a cobrir a guerra na Ucrânia. É autor de Entre Dois Fogos - Verdade, Ambição e Compromisso na Rússia de Putin (Relógio d"Água). Mais uma conversa na FLAD a não perder.


A Estrada Subterrânea
Colson Whitehead
Alfaguara
371 páginas
19,90 euros

Os rapazes de Nickel
Colson Whitehead
Alfaguara
241 páginas
18,45 euros

Ao ritmo do Harlem
Colson Whitehead
Alfaguara
403 páginas
20,45 euros

leonidio.ferreira@dn.pt

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